E, se não tivesse havido o 1º de Dezembro de 1640? Estaríamos a falar castelhano ou a contestar o poder de Madrid, como fazem tantos catalães, bascos e galegos?
Neste dia, o rei de Portugal era o mesmo de Espanha. Em 1580, Filipe II de Espanha e primeiro de Portugal, tinha prometido conservar as leis, a língua e os costumes de Portugal. Mas, no século XVII já estava em curso uma maior integração e um projecto de transformar o nosso país numa província.Em 1640, meses antes de Dezembro, tinha rebentado uma revolta em Barcelona, conhecida por ser a revolta de “els segadors” (à letra, os ceifeiros), descrita pelo português, mas em língua castelhana, D. Francisco Manuel de Mello que ainda teve problemas por defender a nacionalidade portuguesa.Com a revolta da Catalunha, os portugueses conseguiram consolidar a resistência, formar um exército, construir muralhas, visto que as forças espanholas estavam concentradas aí. Évora também sofreu com a ocupação pelo exército de D. João de Áustria.
Mas já em 1637 tinha havido uma revolta popular em Évora, que Severim de Faria tão bem descreve. Repare-se no que se passou, a partir da Praça Grande, hoje Praça do Giraldo:
Choveram no mesmo instante pedras nas janelas e casas do Corregedor, despedidas dos rapazes e pícaros da Praça, os quais, animados com a assistência do Povo, subiram acima e botaram na Praça, furiosa e confusamente, quanto acharam nas mesmas casas do Corregedor e, fazendo uma fogueira defronte delas, se pôs fogo a tudo.Escondeu-se o Corregedor em uns entre-solhos. E, sendo pouco depois achado pelos rapazes, passou aos telhados por uma fresta [...] se recolheu desairoso às casas do Cónego [...], que estão paredes meias com as suas. [...]Continuou a fúria do Povo amotinadamente pela Cidade e entrando em casa de Luís de Vila Lobos, logo na de Manuel de Macedo e de Agostinho de Moura, actuais vereadores, que já estavam escondidos, lançaram tudo o que havia nestas casas pelas janelas à rua, e grande parte se trouxe à fogueira que na Praça ardia. E ainda que estes vereadores não haviam entrado na nova diligência de inventariar as fazendas, tinham o ano passado dado consentimento a um novo tributo de um real por cada canada de vinho, e outro por cada arrátel de carne, que se vendessem pelo miúdo na Cidade, e porque logo então o Povo replicou, e não consentiu nestes novos reais, a que chamavam de água, executou agora nas casas dos ditos vereadores o ódio que desde aquele tempo havia concebido contra eles. E, querendo declarar mais como não consentira nunca aquele tributo do real de água, foi o mesmo Povo ao açougue e fez em rachas as balanças, porque as carnes se arrolavam para este tributo; e correndo às casas dos escrivães, trouxe a queimar na fogueira da Praça todos os livros e papéis que entendeu tocavam ao inventário das fazendas, ao tributo do real de água e também à quarta parte do Cabeção Geral, que o ano passado se havia imposto e em que o Povo do mesmo modo não consentia.Notou-se que em todos estes acontecimentos não houve ânimo nenhum de se furtar cousa alguma; tudo o que se achou nestas casas ou veio à fogueira da Praça ou saiu em pedaços pelas janelas, e tanto assim que até umas panelas de doces, que estavam em casa do Corregedor, vieram à mesma fogueira, sem haver quem lhes tocasse para outro efeito.
Foi este dia de grandíssima confusão nesta Cidade, e quase do mesmo modo os três ou quatro que se lhe seguiram, porque esta parte vil do Povo, que foi só que se moveu, amotinada em vários troços, andava furiosa de dia e de noite, corria e apedrejava as casas daqueles que nas ocasiões dos tributos se haviam mostrado menos zelosos do bem comum, e, como as justiças não apareciam e os nobres recearam que, se resistissem a este ímpeto, o poderiam acrescentar, acumulando-se de novo nos pícaros e maganos, a outra parte melhor do Povo, que não estava declarada, era tudo horror tudo confusão: o Povo se apelidava o Povo se ouvia e, sem ordem nem concerto, o Povo dispunha e executava.
Seguiu quase todo o Alentejo e o Reino do Algarve, e ainda alguns lugares da Beira, o exemplo de Évora, e sucessivamente se foram levantando com os tributos do real de água e quarta parte do cabeção; e dos lugares maiores só Elvas, Moura e Estremoz ficaram quietos, e os demais foram os movimentos da mesma qualidade que em Evora, mais ou menos segundo a ocasião do ímpeto, prudência das justiças e resistências dos nobres, que em toda a parte se opuseram a estes motins. Lugares houve em que vieram a fogueiras públicas os cartórios civis e crimes dos escrivães, em que não havia nada que pertencesse nem a tributos nem a inventários das fazendas.
Manuel Severim de Faria,«Relação do que sucedeu em Portugal, e nas mais províncias do Ocidente desde 1637 até Março de l638», in Alterações de Évora, int. e notas de Joel Serrão, Portugália, Lisboa, 1967, pp. 137-142.
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