quarta-feira, 27 de abril de 2016

Um (meu) 25 de Abril


Invocação
O que me faz escrever este texto, não são as musas, que adormeceram há muito nas obras clássicas, mas sempre renovadas, mas o povo de cidadãos que vi novamente na manifestação do 25 de Abril este ano, em Lisboa, com sentimentos de alegria, vontade de participar, um espírito unitário, jorros de futuros contra a desesperança e o medo dos anos tristes de há pouco.

Um 25 de Abril entre outros, mas também de vontade de mudar contra os medos antigos e interiorizados.

Tinha 16 anos, quase 17, e estava no então oficialmente chamado Liceu Nacional de Évora, no sétimo ano de Letras. O meu pai tinha recentemente mudado para Arraiolos, perto de Évora, para que eu e a minha irmã tivéssemos mais facilmente acesso aos estudos. Também a minha mãe recomeçou a estudar, nada fácil na época, mas sempre com apoio do meu pai.
No ano letivo anterior estava na antiga Secção Liceal do Liceu de Évora em Estremoz. Morava em Sousel e ia e vinha de camioneta ou à boleia, às vezes de comboio numa linha que passava pela serra, cheira de medronheiros e mato variado. Aprendi muito nesse ano, apesar de tudo Estremoz era um meio um pouco mais aberto, cheio de contradições também. Porque Sousel era uma terra pacata, onde parece que não acontecia nada, dominada por senhoritos, pela coscuvilhice de janelas onde não se vê ninguém, mas em que as notícias sobre a forma de estar de cada um se espalham depressa, com marcas permanentes para as mulheres, as jovens que não podiam sair de casa, os rapazes repreendidos por qualquer um, por usarem cabelos um pouco compridos ou ouvirem certas músicas, um padre detentor da moral oficial, a separação dos géneros, as classes e até as castas que ainda existiam, o espaço público privatizado por uma sociedade hierarquizada. O que valia era que os rapazes ainda podiam andar pelos campos e ribeiras, com algumas censuras toleradas, mas alguma liberdade de movimentos.
E, em Évora, já atento às novidades, que ainda se diziam baixinho, com receio de algum pide, informador (havia tantos, voluntários ou à espera de subir na vida com migalhas) fui começando a ler “A República”, o “Diário de Lisboa” e a “Seara Nova” (confesso que uma vez li um artigo de Sottomayor Cardia sobre o Estado que li e reli sem perceber nada e que só anos mais tarde compreendi qualquer coisa).
Vi também em Évora colegas, raparigas, com quem se podia falar melhor, já sem aquelas atitudes desconfiadas, retraídas, até agressivas numa linguagem codificada, aparentemente distanciada, algumas simplesmente porque não conheciam a família daquele que agora aparecia também timidamente, outras porque não sabiam estar na ausência de controle. Vestiam bata branca obrigatória, eram preparadas quer quisessem ou não para um futuro determinado pelos pais guardiões e mais ainda as mães que já tinham sofrido outras prepotências, as tias, as vizinhas, os padres, até as criadas de algumas. Mas havia quem fosse diferente e outras apareceram diferentes tempos depois.
Não sei bem como, mas consegui convencer os meus pais a ficar numa casa em Évora, onde estavam outros rapazes, também estudantes. E, nessa época, havia estudantes, poucos ainda, comparado com os tempos atuais, que vinham de variadas partes do Alentejo, Arraiolos (eu), Montemor-o-Novo, Portel, Alvito, Amareleja, Avis …. Nessa casa entrávamos pela Rua dos Touros, as meninas pela Rua do Raimundo (a mesma casa), almoços e jantares à parte, casa de banho em comum, a horas militarmente diferenciadas. Dos que lá estávamos, eu e outro amigo, ainda tínhamos alguma liberdade de sair um pouco, os outros não, exceto dois mais velhos que andavam no Instituto Universitário (dos Jesuítas), mas elas não, horários bem controlados.
Por vezes, às escondidas ouvíamos a BBC, num rádio que eu tinha comprado com um dinheiro que o meu pai me tinha dado, um salário à peça, por passar avisos postais para aquelas pessoas que não pagavam a água nos prazos devidos (o meu pai era tesoureiro da Fazenda Pública, da Câmara e da Caixa Geral de Depósitos, mistura e concentração essas que mostram um pouco o que eram essas instituições ou o serviço público na época). Apesar das senhoras da casa me terem levado o fio elétrico, não por causa das notícias, mas porque gastaria muito (?!).
Por coincidência única, no dia 25 de Abril, o pai de um de nós veio a Évora de automóvel e levou-nos ao Liceu de carro. Sobretudo um dos nossos amigos ia ufano por ir de carro, pois que na época todos chegavam a pé.
Começou a sentir-se o alvoroço. Notícias várias, contraditórias. Havia quem houvesse escutado na rádio que todos deveríamos ir para casa. Não se sabia se o golpe militar era para mudar para melhor ou se seria dos ultras (havia o exemplo do Chile no ano anterior e um tal Kaúlza que se inspirava na Rodésia branca).
Começam a chegar jornais que alguém comprava, aqueles grandes, como o Século ou o Diário de Notícias, edições diferentes nesse dia, com fotografias e comunicados.
Entretanto, tocava a sineta para as aulas. Tocava no Claustro, movida pela mão do senhor Francisco, chefe dos contínuos desde longos tempos, sempre simpático com os alunos, respeitoso, encarregado de educação de tantos, cujos pais não vinham facilmente à cidade.
Na aula de História começámos a falar mais abertamente. Já antes tínhamos percebido que o professor era diferente, já havia conversas anteriores fora das aulas, e algumas, talvez metáforas, ironias, sobre a situação.
Ainda fui à aula de Latim. O professor era muito conservador, fora em tempos seminarista, rígido e metódico de tal maneira que quando havia dúvidas sobre os sumários, pedíamos o caderno de um aluno de anos anteriores, ninguém entrava depois de ele entrar (qual segundo toque!), nem a aula era interrompida (cinco vezes por semana, incluindo sábado) porque ele dizia que “a aula é sagrada”! Fiquei aparvalhado quando ele disse que o regime tinha que mudar.
Quanto ao professor de Filosofia apenas o vimos quase de relance, assustado, desesperado. Quase tive pena dele, porque o senhor não andava bem e deve ter incarnado os males do regime, embora pense que nada tinha a ver com ele. Na época, eu até gostava de Filosofia, mas como aí não se aprendia nada, debitava umas coisas que estavam no manual. Havia, excecionalmente para o regime, dois manuais, do Bonifácio (aqui adotado) e do Saraiva (havia outro, do Magalhães Vilhena mas esse era clandestino e eu nem conhecia na época). Eu, como já não tinha paciência para decorar, só por isso, quando ele me perguntava qualquer coisa, respondia à minha maneira e ele inquiria-me sobre o manual que teria lido. Respondia que tinha visto no Saraiva e ele aceitava a resposta, talvez porque não lhe passasse pela cabeça que os alunos lessem outras coisas ou que tivessem interrogações! A professora de Português disse nada!
Iam chegando mais jornais, discutia-se, já ninguém ligava às aulas, os horários ficaram esquecidos, as colegas começara a tirar as batas e, nesse, e noutros dias, comecei a reparar que havia uma maior diversidade feminina do que presumia, até porque os recreios, antes separados, começaram a ser uma mistura de diálogos, alegria, vida e esperanças, e muito desassossego, sem saber o que vinha por aí, nesse tal Portugal até aí pluricontinental.
Ao almoço, creio que a comer uma sopa de beldroegas, recebi um telefonema, também coisa única (porque quase não havia telefones e era caro), da minha mãe. Preocupada comigo, mas ao mesmo tempo feliz, porque o meu primo Zé, que estava exilado em França (e do qual não se podia falar quase nada), talvez pudesse voltar e a guerra talvez acabasse para ele e para mim, futuro breve esperado desde há muito, embora eu já soubesse, e ainda sei a morada dele em Paris.
À tarde (ou seria no dia seguinte?), com outros, passei pela sede da PIDE, cercada por militares. Via-se fumo, a sair da chaminé, certamente queima de papéis comprometedores. Ouvi então um jovem oficial dizer em voz alta: saiam daí, cabrões, filhos de puta!
Compreendi então que o 25 de Abril estava a dar resultado, que as coisas iam mudar, porque no dia anterior seria totalmente improvável dizer qualquer coisa de parecido, sem que se fosse preso, torturado, enviado para a um presídio militar, para a frente de combate, posteriormente para a prisão e um futuro previsível de exclusões.
À noite continuavam os soldados em frente ao quartel-general. Eu e o meu amigo Moreira aproximámo-nos, como muita gente, dos soldados. Disse-me um: “não me arranjas umas sandes, que estamos há 20 horas sem comer!?
Fomos a correr a uma taberna no Largo de Alconchel e pedimos sandes ao dono. Perguntei quanto era e disse que era para os soldados. A resposta foi que não era nada porque era para os militares e que nos despachássemos. Fiquei com os olhos vermelhos e percebi que o entusiasmo desse dia não era apenas meu e dos meus amigos mas de tanta gente anónima que confiava na esperança de todos e talvez tivesse ainda esperado mais do que eu por este dia.

Compreendi que o golpe de estado não era apenas um movimento militar e que o país ia mesmo mudar, que os militares estavam voluntariamente ao serviço da liberdade, que o povo queria mudança, que tudo estava ser discutido e que o céu cinzento de ontem seria a partir de agora mais azul.