quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

6 meses

   Churchil, conservador e aristocrata, mas defensor da soberania e do parlamento, proclamava, ao contrário de outros do seu partido, mas subservientes perante a crença de que não podia haver alternativas:

I say to the House as I said to ministers who have joined this government, I have nothing to offer but blood, toil, tears, and sweat. We have before us an ordeal of the most grievous kind. We have before us many, many months of struggle and suffering.

Não hesitou sequer em parafrasear Garibaldi, republicano e radical, detestado pela Igreja ultramontana e por tantos conservadores e, sobretudo, reacionários (o que é diferente de ser conservador):

Chi vuole continuare la guerra contro lo straniero, venga con me. Non offro ne paga, né quartiere, né provvigioni. Offro fame, sete, marce forzate, battaglie e morte. Chi ama la patria, mi segua.

Os povos, em épocas de crise, precisam de políticos, nunca de salvadores medíocres, como já houve, daqueles que só faziam contas de mercearia, mas de políticos que preservem valores democráticos, que lutem pelos direitos e deveres, pelas culturas dos povos que eles representam, pela soberania dos povos e com os povos, com a participação dos cidadãos, que não podem nem devem desistir, gente que incentive, que diga que é possível melhorar as coisas.
O que vemos? Desculpas e desistência! O PSD está juntamente com o CDS no governo há seis meses, mas participou na aprovação dos anteriores orçamentos, do anterior governo, absteve-se sempre viabilizando; aprovou os acordos com a troika e está no governo há seis meses, fazendo até mais do que lhe é exigido, cortando muito mais do que não prometeu e do que verberava.

 Para quê? Para dizer aos jovens que emigrem? Para prometer aos mercados confiança, destruindo toda a confiança que os cidadãos portugueses poderiam ter nos que os elegeram?
Porque se a confiança é um valor sacrossanto, ela também deve ser assumida, e em primeiro lugar perante os cidadãos, os eleitores. Que confiança pode ter alguém que já viu reduções no vencimento, ainda no tempo do outro governo do PS, mas com o aval do PSD (PSD/CDS, embora não se perceba o que entendem por social-democracia e pela tradição socialista e social-democrata europeia) e do CDS. Que confiança pode ter alguém que tem despesas continuadas, com casa, com os filhos … porque confiou no Estado, por definição uma pessoa de bem, e não alguém de má fé que muda as regras constantemente e sem aviso razoável?

Os que prometiam tanto, sabendo que era mentira, agora o que fazem: novos cortes nos vencimentos, nos subsídios de férias e Natal (tão católicos e desejadores de boas festas!) sobretudo nos que trabalham para o Estado, criando cidadãos de primeira e segunda, cortes nos serviços essenciais do Estado, Educação e Saúde, cortes nas pensões dos que acreditaram durante dezenas de anos, aumentos de impostos… e ameaças de que pode vir mais.

Subservientes, não têm nem dão um mínimo de esperança nem promovem trabalho. Mandam os portugueses emigrar, como se estes não soubessem o que é isso há mais de quinhentos anos.

Sr. Primeiro-Ministro, dê o exemplo, vá também para Angola que já conhece, onde diz que foi feliz na sua meninice, vá de avião na TAP que vai vender, ou nos submarinos que o seu ministro comprou e cujos corruptores já foram julgados na sua querida Alemanha, passe por Cabo Verde para visitar amigos e leve o BPN. Seja feliz como na sua infância que nós havemos de encontrar alguém que não tenha vivido sempre na quase eterna juventude do PPD e na sombra do mesmo partido. Os que estão presos ou pronunciados deixe-os estar ou mande-os para o Brasil, mas leve também o Relvas que não pára de dar palpites e dores de cabeça a quem o ouve, deixe-se de andar atrás da Angela, como o Barroso atrás do Bush, que ela foi educada noutro ambiente e vai esquecê-lo muito rapidamente, mais depressa ainda que o francês.
Para Angola e em Força!

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Os tempos da História

Já lá vão uns anos (em 2003) em que apresentei este texto para discussão na escola sobre o problema, recorrentemente em discussão, da distribuição das horas da disciplina de História no 3º ciclo. Como ainda hoje, alguns dos obstáculos que impedem uma discussão séria são o corporativismo, ainda que disfarçado, o relativismo, a indiferença e o menosprezo pelas ciências sociais, alicerçado por um preconceito que se apresenta como uma necessidade de pragmatismo sob a auréola da tecnocracia e do que se presume serem os saberes fundamentais. O texto é datado mas a discussão recomeça (?).

De acordo com o n.º 3, art. 2º, do Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro, “...o projecto curricular de escola é concebido, aprovado e avaliado pelos respectivos órgãos de administração e gestão. “ Assim, e com base no desenho curricular relativamente flexível, constante do referido decreto-lei, as opções a tomar em cada escola poderão conduzir a profundos desequilíbrios quanto ao lugar das várias disciplinas, que poderão pôr em causa a consecução das finalidades fundamentais de algumas delas, tendo em vista a formação integral dos alunos[1].
Neste momento põe-se a questão da distribuição das horas lectivas na área de Ciências Humanas e Sociais. À partida, o senso comum aconselharia a uma distribuição igualitária dos tempos lectivos, fazendo tábua rasa das práticas anteriores, dos princípios que enformam a legislação, dos projectos das escolas, do perfil dos alunos do ensino básico que se pretende construir, da formação que um futuro cidadão português pode ter no espaço português, na Europa e nos países de língua oficial portuguesa com quem mantemos relações seculares e com quem nos identificamos.
Mas os professores, sobretudo, e os outros membros da comunidade escolar não podem, por definição, limitar-se ao senso comum nem a esquecer os problemas ou cair no relativismo fácil. Uma escola em que não haja, para além da informação,  a prática da reflexão, análise, debate, bem poderia fechar as portas, pois que na actualidade os conhecimentos podem adquirir-se acriticamente através de “desvairadas” maneiras e media.
O problema não se põe em termos de valorizar ou desvalorizar determinada disciplina, muito menos em defender mesquinhos interesses corporativos. Os saberes complementam-se e, embora com diferentes perspectivas, pode caminhar-se para uma verdadeira interdisciplinaridade e, no caso concreto, para a transdisciplinaridade. Mais do que a compartimentação das Ciências Sociais, interessa-nos uma perspectiva global, no fundo uma Ciência Social como um todo, com diferentes abordagens de uma mesma realidade, seja através da História, da Geografia, da Sociologia, da Antropologia Cultural, da Economia. De passagem, cito os exemplos de Orlando Ribeiro ou José Mattoso, entre outros, que souberam combinar os contributos científicos das diferentes disciplinas, sem preconceitos em relação à sua escola de origem. Não é isso também que os professores pretendem que os alunos apreendam?
Relembremos o desenho curricular anterior ao D.L. 6/2001 e a sua correspondência ao modelo proposto pelo referido Dec. Lei:

TOTAL
HISTÓRIA
3h = 1,5
3h = 1,5
3h = 1,5
9h = 4,5
GEOGRAFIA
3h = 1,5
-
4h = 2
7h = 3,5
Nesta Reorganização Curricular, a História passou de 150 minutos para 90 minutos por semana no 7º ano. No oitavo e nono ano de escolaridade estão previstas em cada ano uma aula de 90 minutos semanal, havendo uma aula de 45 minutos que pode ser distribuída pelas disciplinas de História ou Geografia em alternativa. Se, em um desses anos (o 8º ou o 9º ano), a disciplina de História ficasse apenas com uma aula de 90 minutos, perderia no conjunto do ciclo cerca de 64 aulas, enquanto a disciplina de Geografia, que ganhou a continuidade no 8º ano, continuaria com o mesmo número de aulas.
Os programas de História são os mesmos há vários anos e foram projectados para um número maior de aulas. [...].
O lugar da História, no currículo do 3º ciclo também tem uma história, diria secular e permanente, no que respeita aos tempos lectivos. Mesmo antes do 25 de Abril de 1974 esta disciplina era contemplada com 3 tempos lectivos semanais. Infelizmente (infelizmente numa perspectiva de rigor científico e de assunção de valores democráticos) a ideologia nacionalista exacerbada, o conservadorismo, a censura em relação ao mundo contemporâneo e aos movimentos sociais, políticos, estéticos, religiosos etc. estavam sempre presentes ou ... ausentes conforme os interesses. O mesmo se passava com a Literatura Portuguesa (até Camões e Eça de Queirós eram censurados), com a Geografia ao serviço do “Portugal Pluri-Continental” ou a Química onde se estudavam os ciclos do azeite e do vinho ou do sabão, espelho de uma sociedade rural, da mercearia, da terrinha e da adega,  que o regime teimava em conservar. Compreender e actuar no mundo actual era simplesmente proibido! Explícita e implicitamente remetia-se a História para a retórica do passado. Os conhecimentos, em geral, serviam mais para a aquisição de títulos que reproduziam uma sociedade imobilista e de ostensiva diferenciação social.
De 1974 até à actualidade Portugal mudou e evoluiu, integrou-se no mundo moderno e no espaço europeu. O papel da disciplina de História foi compreendido como essencial para a explicação do lugar em que vivemos, das relações que temos com a Europa e o Mundo, da complexidade e multiculturalidade, da compreensão que poderemos ter, enquanto cidadãos, da consciência nacional e da identidade em permanente construção e a memória de uma cultura sedimentada por um passado de inúmeras gerações que ajudaram a construir o presente.
Trata-se de valores: éticos, políticos, estéticos ... Ao contrário de práticas do passado, antes “legitimadas” e assumidas, agora ocultadas, por alguns, pelo senso comum ou pelo cumprir apenas das burocracias imprescindíveis, hoje pretende-se, até por imperativo legal, que os valores sejam, não doutrinados e humildemente aceites, mas assumidos critica e conscientemente e escolhidos pelos sujeitos que são os alunos. Os estudantes são confrontados com as diferentes formas como culturas e civilizações encararam e resolveram os seus problemas, as suas crise e rupturas, como viveram o seu dia a dia, como estavam mais ou menos hierarquizadas, como construíram as suas cidades, se apropriaram dos espaços e usufruíram as artes, como se relacionavam com o seu Deus ou deuses, como pensavam sobre o mundo conhecido e praticavam a ciência, como conviveram ou destruíram o outro.
Trata-se também de competências. Não basta saber, é necessário saber fazer. Prescreve-se o tratamento da informação e utilização das fontes, a compreensão histórica nas vertentes da temporalidade, espacialidade e contextualização e a utilização adequada das linguagens das diferentes áreas do saber para se expressar.
O papel da História  não se pode exercer no vazio. As competências e capacidades têm necessariamente referentes cognitivos, adquiridos pelo prazer e pelo trabalho. Como compreender, por exemplo, as relações de Portugal com o Brasil e países africanos e valorizar a diversidade cultural sem estudar a expansão portuguesa; como interpretar a arte e os textos de épocas passadas e da actualidade sem algumas luzes sobre Atenas no século V, a Idade Média, o Renascimento ou as revoluções liberais, épocas inscritas no que se entende por matriz europeia; como assumir valores sem conhecer as diferenças, como analisar o espaço da cidade em que vivemos sem conhecer as funções e os espaços da mesma cidade em épocas diferentes?
Não se trata já do enumerar de datas e factos sem sentido, da utilização abusiva da memória sem compreensão nem explicação, enfim, do discurso autoritário que mantinha a ordem social. Já se fez isso noutras épocas, já não se faz por aqui há muito. Para Duby (1997), o historiador tem o dever de não se fechar no passado  e reflectir assiduamente sobre os problemas do seu tempo, porque, como diz, «para que serve escrever a história se não para ajudar os contemporâneos a manter a confiança no futuro e a armar-se melhor para enfrentar as dificuldades que quotidianamente se deparam?» [2].
Mas também não nos interessa produzir historiadores em ponto pequeno. Nem sequer a maioria dos alunos vão seguir a disciplina de História após o 9º ano, uns porque seguem para outras áreas, outros, uma percentagem significativa, porque abandonam a escola. Sem um sólido ensino básico o que farão? Esta é a raiz do problema. O fundamental é a formação integral do cidadão e a eliminação das desigualdades que a escola pode corrigir em vez de acentuar como a nossa constituição prescreve:
ARTIGO 73.°
(Educação, cultura e ciência)
1. Todos têm direito à educação e à cultura.
2. 0 Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para o desenvolvimento da personalidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida colectiva.
3. 0 Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural, (...)
ARTIGO 74.°
(Ensino)
1. Todos têm o direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar.
2. 0 ensino deve contribuir para superação de desigualdades económicas, sociais e culturais, habilitar os cidadãos a participar democraticamente numa sociedade livre e promover a compreensão mútua, a tolerância e o espírito de solidariedade.
É também na sequência deste articulado da nossa Lei Fundamental que a nossa escola, a Escola Secundária de Severim de Faria consignou, entre outros, no seu projecto educativo, os seguintes princípios:
3) Garantir o primado da dimensão pedagógica em toda a sua actividade assumindo-se inequivocamente como agente educativo privilegiado.
5) Relevar o domínio da Língua e Cultura Portuguesas, como factor determinante do processo de identificação e afirmação dos valores nacionais.
7) Compreender a solidariedade e o respeito pela diversidade cultural como vertentes fundamentais da formação do cidadão numa perspectiva universalista e integradora.
Como se disse atrás, não se desenvolvem capacidades no vazio, não se aprende a aprender, a fazer e a saber fazer sem tempo. Cumprir programas sem tempo suficiente é receitar apenas aulas expositivas, cumprir conteúdos sem objectivos, é dar o primado a actos administrativos em detrimento da dimensão pedagógica.
Junho de 2003
João Simas


[1] PARECER DA DIRECÇÃO DA APH SOBRE PROPOSTA DE REORGANIZAÇÃO CURRICULAR DO ENSINO BÁSICO, Direcção da Associação de Professores de História, Lisboa, 2 de Maio 2000
[2] PARECER DA DIRECÇÃO DA APH SOBRE PROPOSTA DE REORGANIZAÇÃO CURRICULAR DO ENSINO BÁSICO, Direcção da Associação de Professores de História, Lisboa, 2 de Maio 2000

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O diktat da perda de soberania e a longa história do parlamentarismo.

 Em consequência, em todos os estados, a lei positiva primeira e fundamental é a que estabelece o poder legislativo; [...]. Esse poder legislativo constitui não somente o poder supremo do Estado, mas permanece sagrado e imutável nas mãos daqueles a quem a comunidade uma vez confiou. [...]
John Locke, Ensaio Sobre a Verdadeira Origem, Extensão e Fim da Poder Civil (1690)

Estas discussões são antigas e foram revertidas para leis, até em Portugal, apesar de tanta interrupção e tantas situações de protetorado. Em 1822, a Constituição Portuguesa, obra das cortes (o parlamento) decretava assim:

ART 26 A soberania reside essencialmente em a Nação. Não pode porém ser exercitada senão pelos seus representantes legalmente eleitos. Nenhum indivíduo ou corporação exerce autoridade pública, que se não derive da mesma Nação.
ART. 27 A Nação é livre e independente, e não pode ser património de ninguém. A ela somente pertence fazer pelos seus Deputados juntos em Cortes a sua Constituição, ou Lei Fundamental, sem dependência de sanção do Rei. 

Nem rei nem governo aqui nem qualquer pretenso ou pretensa baronete ou imperador ou imperatriz de outros lados da Europa.

Agora querem-nos fazer dos ingleses os "maus da fita", neste famigerado consenso europeu, onde anónimos mandam, tecnocratas que bem provaram ser exímios gestores de empresas financeiras (agora diretamente no poder em alguns estados europeus) mandam,  de governos onde  um(a) manda, outro quer mandar e outros são subservientes.
Só que os ingleses, à direita e à esquerda não esquecem leis e pensamentos que perduram há séculos e que custaram também a vida a muitos, mas proporcionaram paz e algumas liberdades durante séculos, pelo menos desde 1688. 
 Ainda na Idade Média fizeram o rei assinar a Magna Carta. Séculos mais tarde, com muitas convulsões e decapitações entretanto, fizeram o rei assinar a Petição dos Direitos em 1626. Por fim a Gloriosa Revolução de 1688, em que escolhem um rei que jura um documento que lhe retira poderes e dá-os ao representantes da Nação:

E portanto os ditos lordes espirituais e temporais, e os comuns, respeitando suas respectivas cartas e eleições, estando agora reunidos como plenos e livres representantes desta nação, considerando mui seriamente os melhores meios de atingir os fins acima ditos, declaram, em primeiro lugar (como seus antepassados fizeram comumente em caso semelhante), para reivindicar e garantir seus antigos direitos e liberdades:
1. Que é ilegal o pretendido poder de suspender leis, ou a execução de leis, pela autoridade real, sem o consentimento do Parlamento.
2. Que é ilegal o pretendido poder de revogar leis, ou a execução de leis, por autoridade real, como foi assumido e praticado em tempos passados.
Declaração dos Direitos, 22 de Janeiro de 1689

domingo, 30 de outubro de 2011

O PS, o orçamento e nós (alguns) que pagamos sempre.


É bastante provável que houvesse mais contas escondidas do que aquelas que quem tem obrigação de saber sabia. E sabiam os que nos têm governado nestas últimas décadas.
Mas o essencial não é isso. Os últimos orçamentos foram votados com a ajuda do CDS e do PSD (que tem tanta gente implicada em negócios ruinosos para a “res publica”, a começar pelo BPN …). Os juros da dívida pública têm aumentado exponencialmente nestes últimos anos, exigidos pelos “nossos amigos” que nos “ajudam”. O esquema, entre outros, tem sido simples: pedem emprestado ao BCE (para o qual o Estado Português também contribui) a 1% e emprestam a seguir ao Estado a 8, 10, 15% … coisa que ninguém vai poder pagar mesmo que deixe de comer. O acordo com a chamada “toika” foi feito com o acordo do PS, PSD e CDS em determinados termos.
Quer agora o governo ir muito mais para além do acordado, como se aparecesse inocentemente “ex-machina”, “desconhecendo tudo, não se importando em desdizer descaradamente o que prometeu?
A solução é retirar aos do costume, num dos países mais desiguais da Europa: aos que trabalham e sobretudo aos funcionários do Estado. A isso chama-se confiscar. É levar a que o estado não seja pessoa de bem, porque nem sequer cumpre as leis e cria a desconfiança, contra a confiança que tanto apregoa. Já não se esconde que não é apenas uma questão financeira: é ideológica no essencial. Antes sabiam como cortar nas “gorduras” do Estado. Descobriu-se agora (e “descobrir” agora é demagogia e incompetência) que afinal as “gorduras” são pessoas, que nem ganham muito segundo os padrões abaixo da média europeia, a Educação, a Saúde, a Segurança Social … tudo o que contraria os pensamentos socialistas e social-democratas, para não referir direitos mais simples.
Afinal a solução é cortar nos salários e aumentar o IVA dos que precisam para a subsistência, aumentar os impostos dos que se endividaram a comprar casas …
Não estava no acordo retirar dois vencimentos por ano, nem estes aumentos brutais de impostos.
Se o PS aprovar o orçamento (abster-se é o mesmo), fica totalmente refém do patrão e a pouca ideologia de esquerda que ainda tem já nem sequer fica na gaveta, como noutros tempos.
 Estrada municipal entre a Igrejinha e Vimieiro (Concelho de Arraiolos)


Do mito da Europa solidária



A recessão está aí e vai continuando, alegremente para outros, porque o capital não desaparece, muda volatilmente de dono. A Grécia tem sido expropriada continuamente, Portugal tem ido no mesmo caminho. Criam-se mentiras, infelizmente propaladas por alguns candidatos a ditadores da Europa, baseados em conceitos xenófobos. É triste ouvir-se dizer que os gregos e todos os da Europa do sul não trabalham: as estatísticas provam precisamente o contrário. E querem-nos obrigar a acreditar nesses preconceitos. Se se dissesse que a produtividade é menor em alguns setores, teriam razão. Mas apontam os do Sul como se fossem uns malandros, como se nos países nórdicos ninguém passasse férias por todo o mundo, como se não tivessem benesses nenhumas. O que se tem passado é que os países que têm problemas pagam juros enormes com uma transferência incessante para outros centros financeiros, onde aparecem uns dirigentes políticos que se dão ao luxo de chamar aos outros preguiçosos, levarem o capital e ainda quererem mandar nos outros como se fossem colónias ou protetorados.
Tem razão Vasco Pulido Valente (raramente concordo com ele, mas leio-o atentamente porque sabe argumentar e escrever), numa crónica hoje do Público, quando diz que a Europa, ou antes, os países da Europa, têm sido construídos com os nacionalismos. Efetivamente foi assim, desde o século XIX pelo menos, e esses nacionalismos têm sido, porque constantemente exacerbados, os construtores de guerras, submissões, genocídios. Mais do que a paz, a guerra tem sido uma constante nestes últimos dois séculos. A primeira guerra mundial com massacres nunca antes havidos, a segunda com genocídios inimagináveis … as guerras provocadas na ex-Jugoslávia … A Alemanha sempre esteve como protagonista e foi sempre perdoada. Recebeu ajudas após a 2ª guerra … foi ajudada na unificação ou anexação da outra Alemanha. Outros também lucraram e muitos foram os que participaram com prazer no embarque de vagões com destino a campos de morte (não apenas de judeus, como outras grandes minorias, ou simplesmente gente que lutava um pouco pela liberdade). Não nos obriguem a recordar que houve tantos austríacos, flamengos, franceses, húngaros, finlandeses … a participar nessas coisas, tendo-se reconvertido tão rapidamente a ideias que nunca defenderam
A solidariedade europeia tem sido uma ilusão destas últimas décadas. Como é que ainda há o descaramento de se falar em solidariedade quando alguns dirigentes moralistas do norte da Europa se regozijam das medidas que têm sido implementadas na Grécia, na Irlanda, em Portugal, na Espanha… Solidariedade é ficarem todos satisfeitos com o aumento do desemprego, a perda brutal dos rendimentos de que trabalha, a fuga de capitais, a diminuição dos orçamentos na Saúde, na Educação, na Cultura …?

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A profanação dos corpos

[Aquiles] arrastava o cadáver de Heitor, que amarrara atrás do carro.
E depois que o arrastara três vezes em torno do túmulo
Do falecido filho de Menécio, de novo se deitava na tenda.
Mas deixava Heitor estendido, de cara para baixo na poeira.
Porém Apolo afastava da carne todo o aviltamento, com pena
De Heitor, até na morte. Cobriu-lhe o corpo todo com a égide
Dourada, para que Aquiles lhe não dilacerasse a carne ao arrastá-lo.
[Apolo referindo-se a Aquiles] Só que nada obterá de mais belo nem de mais proveitoso.
Que contra ele não nos encolerizemos, nobre embora seja!
Pois ele avilta na sua fúria terra que nada sente.

Ilíada, canto XXIV, tradução direta do grego e em verso feita por Frederico Lourenço.

Aquiles, filho de uma deusa e de um homem,  mata Heitor em combate, porque este tinha morto também em combate, o seu amado e viril amigo Pátrocolo. Não satisfeito, profana o corpo, arrastando-o sucessivamente pela terra. Não só Apolo, o “sol invictus”, deus da Razão, não aceita tal procedimento, como Zeus ordena que o corpo seja entregue ao pai de Heitor, para que a família faça as cerimónias fúnebres. Intervêm também a deusa Tétis, mãe de Aquiles furibundo, que sai das profundezas de uma gruta marítima, fala com o filho e com o venerando ancião, Príamo, pai de Heitor, que vai ter com Aquiles, guiado por outro deus, Hermes. Aquiles por fim acede, entrega o corpo e convida Príamo para uma refeição. Interrompe-se a guerra por doze dias!

Este é um dos episódios marcantes da Ilíada, obra-prima da cultura helénica e europeia, que reivindica ainda hoje a cultura clássica.
Aquiles é o herói sobre-humano, mas não o seria se continuasse a aviltar o corpo de quem combateu e matou, não o entregando a um velho e corajoso pai.

Será que ainda somos herdeiros desta matriz europeia?