sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Ainda as Bíblias e os escritores

Falo em bíblias porque, no essencial, o Alcorão (agora há quem diga Corão, mas em português a palavra usada ainda leva o al, como quase todas as outras de origem árabe) é uma outra versão da Bíblia, adaptada a outros crentes, mais recentes historicamente, pois que Maomé viveu muitos séculos depois dos textos estarem fixados (ou não, mas isso é ainda outro problema). E aqui há também que não confundir com o ponto de vista cristão que juntou e dividiu em duas, o Antigo e o Novo Testamento (não é este que está em causa).
Se falamos de Bíblia, em sentido estrito e mais universal, é aquela escrita antes de Jesus (aliás Cristo não escreveu nada e quem escreveu foi muito tempo depois e com escolhas, para que os textos fossem mais coerentes entre si, o que nem sempre se conseguiu).

Só para realçar um pouco a ideia, tanto na Bíblia como no Alcorão os profetas são os mesmos e os anjos também. Aliás, Maomé, que era analfabeto no início, recebeu as mensagens através do anjo Gabriel, o mesmo que anuncia outras coisas e que fala com Maria, também venerada pelos muçulmanos, tal como Jesus para eles é um dos grandes profetas.

Ora o Deus que aparece na Bíblia, nas várias versões antigas, é frequentemente arbitrário e exclusivista, protegendo uns, arrasando outros. Costuma-se dizer que os desígnios de Deus são insondáveis. Trata-se de Fé e contra a Fé, por natureza, não há argumentos racionais, porque não se trata de Lógica mas de Crença.

Escandalizam-se alguns, mas também são parciais. José Rodrigues dos Santos publicou agora um livro explícito no seu título:  Fúria divina. Vende-se mas não dá escândalo. Porquê? Afirma mais ou menos o mesmo que Saramago e vai até mais longe ao referir o Alcorão. Se fosse vendido no Afeganistão ou na Arábia Saudita (clandestinamente claro) certamente teria grandes problemas. Aqui não, felizmente. Nem os muçulmanos portugueses reagiram como alguns católicos em relação a Saramago.

Mas se houver alguém que publique um livro do mesmo género em que se baseie só na Bíblia que os judeus usam seria acusado de anti-semitismo.

Mas afinal não é mais ou menos o mesmo? O Deus dos Exércitos, o Deus arbitrário e vingativo está nestas Bíblias.
Alguns dos que acharam graça às caricaturas de Maomé saídas num jornal dinamarquês e que acharam indmissíveis as reacções de alguns muçulmanos, agora indignam-se com Saramago.
Será que ainda pensam que são o Povo Eleito (bíblico), com exclusão dos outros e que a indentidade portuguesa ou europeia obriga a que sejam castigados os blasfemos e que os restantes façam profissão de fé?

Há quase cem anos (faz este ano) foi proclamada a República com a separação do Estado e das Igrejas. Já antes noutros países também. Na Turquia desde a década de vinte.

Já era tempo de alguns perceberem isso.

sábado, 24 de outubro de 2009

A nova ministra da Educação

Isabel Alçada foi indigitada para Ministra da Educação.
É uma pessoa respeitada, que tem escrito livros para adolescentes e fez um trabalho interessante com o Plano Nacional de Leitura.
Mas apoiou totalmente a política da ex-ministra da Educação.
Vi pessoas entusiasmadas com a nova ministra.
Mas, para lá das simpatias ou antipatias pessoais, não será melhor pensar qual é a política que vai ser seguida, conhecer o programa do governo?
Afinal Maria de Lourdes Rodrigues só lá esteve os quatro anos porque tinha a confiança reiterada do primeiro-ministro.
O primeiro-ministro é o mesmo e não mudou de ideias.

O que vale, não é a nova cara de ministra, o importante é que a Assembleia da República mudou e os partidos da oposição comprometeram-se a mudar a política da Educação. Até aqui o PS era irredutível. Agora vai ter que respeitar a vontade dos eleitores que recusaram a maioria absoluta e as "verdades" incontestáveis e o achincalhamento de quem não estava alinhado.

Vamos ver se os compromissos vão ser assumidos.Só depois de saber o programa do governo, as primeiras medidas em relação aos temas da polémica e a reacção de cada deputado é que poderemos formar opinião.

Até aqui está tudo como dantes. A legislação contestada está em vigor. Se nada mudar logo nas primeiras decisões, então teremos que estar mais atentos e mostrar que os cidadãos estão vivos. Neste governo de continuidade não pode haver dilatação de tempos de espera. Cada dia de espera é o agravar do que já foi feito.

Temos urgência em ver o que vai mudar.
É preciso mais que um sorriso.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Exercícios

Um tema, uma questão leva a outra e assim sucessivamente.
Vem isto a propósito de certa falta de assuntos que têm vindo à imprensa e à blogosfera.

Para mim, o caso Maitê Proença seria irrelevante, não fosse esta mania de muitos portugueses de passarem o tempo a dizer mal do país e escandalizarem-se quando alguém “de fora” (será que Maitê é mesmo de fora?) faz o mesmo ou diz o mesmo. Quase de admirar é também o “portuguesismo” de muitos brasileiros, que vivem entre a anedota do “Manuel” e a secreta admiração pela Europa, onde afinal Portugal também está, e algum orgulho na ascendência portuguesa.

Outro escândalo foi o de Saramago sobre a Bíblia, que leva até um deputado Europeu do PSD a pedir que ele renunciasse à nacionalidade portuguesa. Deveria pelo menos saber que desde 1910 que não há nenhuma religião oficial em Portugal. Mas Saramago também se lembra (e nós) que houve um secretário de estado da Cultura, num governo de Cavaco Silva que o pôs no “Índex” por ter falado dos Evangelhos, como se vivêssemos no tempo da Inquisição, o que o levou a fartar-se disto e a ir para Espanha, aliás numa tradição bem portuguesa, em que os “castiços” acham sempre que os outros devem ser “malhados” ou, pelo menos, exilados. Já assim era no tempo de D. João III ou de d. Miguel.

A opinião de Saramago é apenas uma opinião sem grande reflexão, uma pequena provocação, que não mereceria grandes conversas. E qual é o mal de haver pequenas provocações? Vivemos em algum estado teocrático? Disse Saramago o mesmo que poderia ter dito qualquer anticlerical no tempo da República e até antes ou depois. O prémio Nobel e o facto de ser um bom escritor não lhe dá competências de teólogo ou exegeta. É o mesmo (no caso pior) quando um conhecido professor de direito da Universidade de Coimbra fala sobre o ensino, sem perceber do que se trata ou quando um cirurgião dá opinião sobre o TGV, só porque calhou em conversa.

E não sendo eu exegeta nem teólogo resolvi dar mais uma espreitadela pela Bíblia. Diria antes Bíblias, porque há tantas traduções, tantas interpretações, livros canónicos para uns, desprezados ou ignorados por outros. Depois há leituras alegóricas e outras literais. Há o Velho Testamento, que não é bem igual ao dos judeus e até o Alcorão, que no fundo é uma Bíblia baseada nas outras.

E, nestes exercícios, consultei uma tradução do livro que mais edições teve em português ao longo dos séculos, ultrapassando qualquer grupo de escritores reunidos: a Bíblia d’Almeida.

João Ferreira d’Almeida, português do século XVII, fugiu para os Países Baixos protestantes (conhecidos vulgarmente por Holanda), foi, como tantos portugueses exilados, para as colónias das companhias holandesas e, a partir de Batávia (actual Indonésia), fez uma tradução da Bíblia, várias vezes modificada por outros nas inúmeras edições.

Não conheço a edição princeps, parece-me até que nem é conhecida, apenas encontrei uma, acessível inteira no Google, editada em Nova Iorque em 1848.

Ressalvando as modificações a linguagem é interessantíssima, pois está num português clássico mas já com algum sabor arcaico, embora certas palavras tenham ainda o mesmo significado no português do Brasil.

Questionei-me sobre a qualidade da tradução, questão nada fácil, porque as traduções em línguas vulgares, foram a diversas fontes, a traduções do Latim, do Grego, do Hebraico, de acordo também com a tradição aprovada por cada Igreja. Os próprios Evangelhos foram escolhidos entre muitos, escritos também alguns muito tempo após a morte de Jesus. E, no caso da Igreja Católica, a  tradição é extremamente importante. Por isso, durante séculos, sobretudo a partir do concílio de Trento (século XVI), para se ler a Bíblia só com autorização da Igreja e em Latim. Ao contrário dos protestantes que a liam nas línguas nacionais e, por isso, só um protestante a poderia ter traduzido para Português.

Se estas questões são quase irresolúveis, a quem haveria de perguntar?

Pensei em alguém que conhecesse Teologia e que não fosse um prosélito ou um propagandista dogmático.Mas os teólogos também estão comprometidos. Lembrei-me então de um livro de Régis Debray, filósofo, que em tempos escreveu sobre Che Guevara e hoje se dedica a estudos sobre religiões, em que diz que alguns dos intelectuais mais honestos nestas matérias são teólogos, entre os quais os da Companhia de Jesus. Além disso, dentro da Igreja Católica os Jesuítas são, em geral, as pessoas com maior formação intelectual, muitos deles com mais que uma licenciatura e doutoramento.

Procurei um “site” da Companhia em Portugal e fiz perguntas. Recebi resposta, com alguma humildade perante a complexidade (o que só demonstra conhecimento) e com referências sobre onde poderia encontrar melhor resposta.

E vi uma referência importante, que um dia talvez leia, de Frei Herculano Alves, que fez um doutoramento agora publicado, sobre a Bíblia de João Ferreira d’Almeida.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

O sexo e as religiões



Museu em Rodes


Nem sempre o sexo não abençoado foi uma proibição.

É nas religiões do Livro, isto é, no Judaísmo, Cristianismo e Islamismo que elas são mais rigorosas.
Mesmo assim há diferenças dentro delas. Há, apesar de tudo, uma diferença enorme entre o wahabismo da Arábia Saudita ou as práticas de países como Marrocos ou a Síria. Nas "Mil e uma Noites", do tempo do califa Harun Al Rashid, em Bagdad o ambiente é relativamente liberal. O cristianismo ortodoxo grego parece-me mais conservador que o católico. E quanto a judaísmo há também de tudo.

É também preciso ter em conta que os textos podem ser levados mais a sério numas épocas do que noutras. Por exemplo, na Idade Média, mesmo em Portugal, as proibições eram vistas mais como um ideal. Basta ver que raro era o rei, nobre, bispo que não tinha filhos fora do casamento. D. João I não era filho ilegítimo e o seu principal apoiante, Nuno Álvares Pereira era um dos muitos filhos do Prior do Crato. Basta ler as cantigas de escárnio, cantadas na corte, que ainda fazem corar muita gente hoje, ou as histórias do Decameron, extremamente explícitas.
Mesmo na Idade Média islâmica andaluza (também nossa) os poetas continuavam a celebrizar o corpo (e os prazeres do vinho também).
Roma no século XVI era a cidade da Europa que tinha mais prostitutas que pagavam imposto ao Papa e se Alexandre VI (Bórgia) e seus filhos ficaram conhecidos pelos escândalos, não eram os únicos.
Mais intransigentes era os calvinistas nas suas diversas formas. Os puritanos de Cromwell proibiram até o teatro na Inglaterra e quase tudo o que não fosse trabalho e oração. E não foi só a Inquisição que matou bruxas (esta especializava-se mais em judeus), uma atitude que revela um fundo misógino. Por quase toda a Europa protestante e América se fizeram fogueiras com elas.
Diferentes eram as religiões da Antiguidade Clássica. Afrodite (Vénus) "traía" Vulcano com Ares (Marte) e não tinha medo de esconder a sua beleza; alguns como Zeus gostavam de mulheres terrenas.
Os gregos clássicos celebrizavam o corpo humano, sobretudo o masculino e não tinham medo do nu.
Mas no final do Império Romano, quando o cristianismo se torna religião oficial tentou destruir-se tudo o que simbolizava paganismo e o corpo passou a ser pecado.
A seguir veio Maomé que aprendeu com judeus e cristãos.

Maus Costumes?

Não sei se foi esta Bíblia que Saramago leu, mas esta aconselha a não ter "maus costumes":

Já em tempos mostrei
http://ruadealconxel.blogspot.com/2008/02/tradues-da-bblia-na-idade-mdia.html
uns extractos de uma Bíblia traduzida na Idade Média, em Portugal.
Vou repetir:


«Nam sera puta das filhas de Isrraael nem putanheiro dos filhos de Israel nem offereçeras merçe de puta nem preço de cam em a cassa do senhor Deos teu porque abominaçam e çugidade he açerqua do senhor Deos teu.» (Deut. 23, 18-19)
Nota: cam (cão) é um prostituto.

No Tratado da Confissom, a condenação também não é mansa em relação aos que se masturbam (sua natura na maano e faz lixo), homossexualidade masculina (meter sua natura ãtre suas pernasou doutro homẽ e fezer lixo ), sexo com animais (faz fornizio com besta ), sodomia, dependendo se é com mulher ou com homem, passivo ou activo, lesbianismo (da molher que iouuer cõ outra molher) ...
Um verdadeiro catálogo!
A maior parte dos castigos são jejuns (iaiũar), mas alguns prolongados.
Item todo homẽ que tomar sua natura na maano e faz lixo esto he pecado comtra natura. E por quantas uezes o fezer iaiũe .xv. sestas feiras a pã e agua por cada hũa uez. Itẽ todo homẽ que meter sua natura ãtre suas pernas ou doutro homẽ e fezer lixo este outrosi he pecado muy maao e desapraz com el muyto a Deus e deue por cada uez iaiũar quinze sestas feyras a pam e agua
[...]. Item todo homẽ que faz fornizio com besta deue ieiũar duas coresmas a pam e agoa e a primeyra deue ieiunar a porta da ygreia se poder. E se esto fezer com muytas bestas deue dauer moor peemdemça e deue de ieiũar as sestas feyras por sete anos. [...]

Outrosy o macho que este pecado fezer ẽ na molher outra tal peẽdẽça faça tirãdo das sete coresmas iaiũe as duas a pã e agoa pois logar ha departido para aquelo fazer, em outro logar o faz moor pecado faz. Outrosy todo homẽ que faz aquela poluçõ cõ sua maão ou cõ outro mẽbro, iaiũe sete coreesmas [...]. Se macho fezer luxuria cõ besta pello logar de besta, iaiũe sete coresmas. [...] Se uarõ se poser com molher, cõ aquele stormento que soõe a fazer as molheres para comprir sua maldade tal pena sofra como aquel que fez pecado sodomitico, e a molher que pecado sodomitico sofrer.
A molher que se soposer a besta, iaiũe .xiiii. coresmas a pã e agoa tirãdo os domĩgos nẽ uista panos de linho nẽ este ẽ egreia. [...] E da molher que iouuer cõ outra molher cõ aquel estormẽto que fazẽ as molheres, iaiũe sete coresmas a primeira a pã e agoa.

in José Barbosa Machado, O léxico obsceno na prosa medieval portuguesa Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

A Maitê das nossas indignações.

Filme: A Selva
Este vale a pena ver (a Selva). E ler a obra de Ferreira de Castro (o túmulo dele está na Serra de Sintra)

Maitê Proença na Playboy. Provavelmente não está a ler a Bíblia dos Jerónimos (essa contém iluminuras), nem a Bíblia de Saramago. A magreza evidenciada foi certamente antes de comer pastéis de Belém.


Maitê fez telenovelas, até filmes em co-produção com empresas portuguesas. Aí quase todos gostam dela, até porque tem uma presença agradável e voz doce.

Ora Maitê deve ter resolvido dar uma volta por Sintra e Lisboa, comeu e bebeu umas coisas e fez-se filmar com uma câmara de bolso, talvez um telemóvel, visto que a qualidade das imagens é mais que medíocre e ela própria costuma ter uma presença melhor face às câmaras e, presumo, já deve ter dito coisas com humor. Comeu, cuspiu, riu-se de coisas a que ela achou graça e mostrou-se numa televisão a fazer gracinhas. Nesse aspecto Maitê e esse canal de televisão merecem-se. Também ninguém parte do princípio que as televisões actuais, por aqui e por ali, são os melhores veículos de transmissão de cultura ou de manuais de boas maneiras ou de divulgação do Património mundial. Por aqui nada de críticas, nada de escândalos. Temos também por aí tanta gente sem qualidade nenhuma a fazer trabalhos para encher o tempo da televisão com sensacionalismos efémeros.

O que me preocupa em Maitê é a imagem das loiras. Conheço tantas loiras inteligentes, como morenas e outras também. Há tanta anedota parva sobre loiras, que já se boceja.
Não havia necessidade de aparecer mais uma a justificar as anedotas de loiras burras.
É isso que me indignou por uns momentos, porque coisas para fazer ou pensar tenho muitas em lista de espera.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Valter Lemos ou o rosto oficial do Ministério.

Há já uns bons anos, em 1997, Filomena Mónica publicou, depois de vários artigos na imprensa, um livro com o título Os Filhos de Rousseau: Ensaios sobre os Exames.

Chega a conclusões como:
A cultura dominante é a inculcada nos cursos de Ciências de Educação. Trata-se, em resumo, da mistura entre o legado de Rousseau e algumas ideias, mal digeridas, da Sociologia da Educação, com ênfase para as que contestam a autoridade do professor, a validade dos conteúdos curriculares e a disciplina nas salas de aula. Evidentemente que ninguém conseguirá – nem o julgo desejável – reconstituir a autoridade como ela existiu no passado. Mas a ideia de que é possível aprender sem esforço, a subalternização do professor, a ambiguidade perante a avaliação, degradaram as escolas para além do tolerável (Mónica, 1997, pp. 48,49).
A autora, ao criticar os programas de Português vai mais longe:


Ora este senhor tem sido nos últimos anos Secretário de Estado da Educação. Se já sabíamos alguns coisas sobre as suas reacções tempestuosas e virulentas, agora verificámos que há muito que já o fazia, ao pôr-se em bicos de pés em qualquer lado.
Mas o pior não é isso. É que ele representa a política oficial, das ideias à estratégia, do Ministério da Educação.
Enfim, um cursozinho de boas maneiras, a que vulgarmente se chama educação, não lhe ficava mal.

Olhemos agora a disciplina de Português. Mais do que a História, esta cadeira tem sido vítima de modas, do estruturalismo ao pós-modernismo, da psicanálise ao marxismo, do desconstrucionismo ao feminismo […] Foi este tipo de brincadeiras que liquidou a Língua materna. Ao contrário do que dizem alguns linguistas, a subalternização das regras gramaticais afecta de forma particular os alunos dos estratos mais desfavorecidos, os quais não têm, em casa, quem lhes explique como se fala correctamente, como se pensa logicamente, como se escreve rigorosamente. Ao valorizar a linguagem popular, sem reconhecer os limites do seu vocabulário, os pedagogos de esquerda estão a enclausurar os filhos dos pobres no mundo esquálido onde nasceram (Mónica, 1997, pp. 59,60) .
Ora, Filomena Mónica é socióloga e tem feito muitos estudos, nomeadamente sobre os parlamentares no século XIX, Eça de Queirós, Cesário Verde etc. Ao contrário de outros, prova as afirmações, embora discutíveis e certamente a necessitar de mais elementos.
O que achei interessante também foi a reacção de uma determinada pessoa, na época quase desconhecida. Estamos em 1997!
Diz ela:
A crítica mais insólita apareceu num jornal regional, A Gazeta do Interior. Identificando-me com os “hippies” dos anos 60, o articulista, Valter Lemos, declarava que não só fora forçado a aturar as sandálias, vestidos indianos e histeria sociologista da minha geração (devo dizer, para a posteridade, que nunca usei sandálias ou vestidos indianos e que ninguém se pode gabar de ter assistido a qualquer acto de histeria da minha parte provocado por teses sociológicas, como tinha agora de ouvir as minhas ideias “pimbas”. Era ainda acusada de albergar no meu seio um “conceito facilitista de selecção dos mais fortes e exclusão dos mais fracos e de “branquear” o regime salazarista. Sobre a relação que ele postulava, entre estes pecados e Marco Paulo, o autor não era claro (Mónica, 1997, p. 9).

sábado, 10 de outubro de 2009

Dia de Reflexão

Mais um dia de reflexão! Espera-se que os cidadãos reflictam. Ainda bem que não é como noutros países, em que mesmo nas horas de votar as pessoas são bombardeadas com sondagens, publicidade paga por lobbies que exigem o pagamento em actos, com Ética ou sem ela.
No dia da reflexão, saio da minha casa, no chamado Centro Histórico (não gosto deste nome porque leva a pensar em relíquias para exposição ou fotografia para mostrar aos amigos), digamos que saio da minha casa situada numa parte da cidade mais antiga, mas que faz parte da cidade como outros bairros, e pretendo beber um café.
A pastelaria A está fechada, porque a clientela que tem é composta de pessoas que trabalham aqui mas moram noutras áreas, a pastelaria B o mesmo, o restaurante C, tal e qual, o bar D só abre à noite, mas ao sábado menos. O comércio está fechado (os centros comerciais fora não), muitas casas de habitação estão também fechadas e emparedadas até, vê-se uma ou outra pessoa de mais idade, alguns turistas … Lá encontrei um cafezinho ao pé das muralhas!
Hoje até há um ou outro espaço para estacionamento para os moradores que pagam um selo caríssimo, que nos outros dias não há lugares, até porque reservaram a maior parte para tribunais, feitos onde antes eram armazéns de mobílias, pensões e hotéis e ninguém fiscaliza à noite e aos fins-de-semana. Como há menos movimento de automóveis alguns aceleram, táxis incluídos, respondendo arrogantemente se alguém lhes disser que o limite de velocidade intra-muralhas é de 30 km à hora (as placas existem!).
Passo ao pé de uns contentores do lixo já cheios. Não há separação. Mesmo sabendo-se que existem aqui muitos cafés e restaurantes, há talvez alguns que enterram a cabeça na areia e presumem que todas essas garrafas de vidro, papelões e outros vão ser levados para contentores próprios a centenas de metros ou mais. Não vão, apenas alguns particulares com mais pruridos se lembram de ir amontoando em casa esse lixo, até pegarem no automóvel para o levar para locais adequados.
Vão circulando automóveis, que os transportes públicos quase não circulam ao fim de semana e mesmo nos outros dias não chegam como alternativa. Andar de bicicleta, como o fazem normalmente holandeses, dinamarqueses e outros que têm neve e chuva, aqui pode ser perigoso, sobretudo nas rotundas, mas não só; Imagine-se apenas vir do Bairro do Bacelo até aqui e arriscar-se a levar com um automóvel nas traseiras, na dianteira ou nos lados. Ciclovias são mais para lazer que para o dia a dia. Por isso, nos dias da semana, uma cidade desta (pequena) dimensão parece ter mais automóveis que Amesterdão.
Como hoje é sábado, não poderei tratar de nenhum problema relacionado com o Centro Histórico. Se não, lá teria que pegar num automóvel para ir à Zona Industrial.
Felizmente também hoje, uma breve interrupção, não há aquelas procissões medievais com caloiros e outros que de vítimas passaram a algozes e que durante parte do ano passam por estas ruas e travessas, à noite já com a barriga cheia de álcool bebido à pressa, largando impropérios e sons não musicais, como se dentro das casas não houvesse já ninguém. Diga-se que não são só estudantes, são também gentes de outras qualidades e idades, que por vezes aplicaram alguns rendimentos numa ou noutra casa com umas senhoras que servem umas bebidas e outras coisas de lazer.
Hoje, não vi nenhuma ratazana. Mas os indícios de representantes das famílias que tenho visto, lá estão naqueles buracos que vão aparecendo, nos abatimentos das calçadas, fruto desses habitantes da obscuridade que vivem numas canalizações de pedras soltas e galerias adjacentes que foram construindo, roendo também as da água que vai chegando lamacenta às habitações, depois de muitas perdas.
Enfim, volto para casa. Não encontrei sítios onde as crianças possam brincar, nem quase nada que mexa, a não ser os automóveis que podem acelerar mais, porque há menos trânsito.
Ainda assim, nestes passos perdidos, vinha a pensar numa possível explicação para o facto de ter sido proibida a entrada de alguns candidatos, até membros eleitos desta municipalidade, nos Paços do Concelho desta Câmara. Como é possível nos dias actuais em que pessoas de diferentes partidos se cruzam e se cumprimentam, como ontem na Praça do Giraldo? Proibir a entrada de Abílio Fernandes nos Paços do Concelho (vide filme acessível no "Mais Évora), que foi presidente da câmara durante 25 anos, não é só desespero e intolerância: é falta de educação.
E como já reflecti o suficiente nestes últimos anos, vou tratar de outras coisas que também merecem ser tratadas.
Amanhã voto como sempre, até porque me lembro de algumas coisas do passado, vivo este presente e gostaria que os problemas da cidade fossem resolvidos, no interesse de todos, mesmo que isso leve algum tempo e algumas polémicas.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

A campanha da água

Já lá vão uns anos, Évora aparecia nas televisões por maus motivos: morriam doentes no hospital por causa da água de Évora. O culpado foi logo condenado na praça pública: a Câmara de Évora, presidida por Abílio Fernandes. Depois apareciam análises sobre o alumínio na água, às quais se foram até acrescentando uns zeros, por pessoas que esqueceram a ciência e embarcaram no coro. O estardalhaço foi subindo de tom e o PS aproveitou a boleia, até pela voz de um médico e ex-presidente da Assembleia Municipal, que tinha obrigação de falar verdade com conhecimento.
As coisas, em relação aos doentes falecidos por fazerem hemodiálise, foram esfriando, ficou esclarecido (mas não com o mesmo impacto) o óbvio: que a água para a hemodiálise nunca, nem em lugar nenhum isso se faz, pode ser a mesma da rede pública. O hospital deveria tratar a água para estes doentes,
Mas a campanha não abrandou. Foi mesmo o maior argumento para a mudança em Évora. O actual presidente brandia canos velhos na mão, como armas em riste, com a prova provada de que a CDU não se preocupava com as pessoas.
Aproveitaram-se todas as técnicas de propaganda e publicidade, recorrendo a todos os meios, inclusivamente com chamadas gravadas em massa para os telefones privados. O dinheiro para isto tudo não faltava.
Esta agressividade, este martelar constante, até fez esquecer obras que estavam à frente dos olhos, como a mudança total das canalizações, agora incluindo outros cabos, como o da televisão, com arranjos de pavimentos, passeios etc. no Centro Histórico (que se fizeram na rua da Lagoa, Praça do Giraldo, Largo 1º de Maio etc., etc.,).
O PS ganhou as eleições, pararam as obras, as televisões e a imprensa local calaram-se com o problema da água, e a água das canalizações continua lamacenta, mais cara, sem qualidade … uma porcaria. Já poucos se atrevem a beber água canalizada, ou melhor dizendo, bebem os que não têm dinheiro para comprar garrafas.
Sabe-se que estas coisas não se resolvem facilmente. Mas entre demorar um tempo razoável e não fazer nada, há grandes diferenças.
Quem garantia que ia resolver o problema da água teve dois mandatos, oito anos e nada fez.
Por isso, o que é que lá estão a fazer ainda? Manter o poder pelo poder?
O que é que fizeram com tanta promessa fácil?

A Madrugada

25 DE ABRIL

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Sophia de Mello Breyner Andresen

As palavras de Sophia ecoam, são o afloramento de muitas emoções, de muita gente que pensou nunca alcançar a dignidade de cidadão, de ter projectos individuais e colectivos, sonhar e construir um mundo melhor.
Volto a Arraiolos que conheci bem nesse tempo, andava eu no final do liceu, quando despertou o 25 de Abril e a minha consciência deu um sobressalto longo, ao ver e participar numa realidade em convulsão.
Estávamos em crise económica profunda, o tal primeiro choque petrolífero de 73, um país a sair de uma ditadura profunda, com três frentes de guerras coloniais, uma debandada generalizada para França e outros países, uma nação que se envergonhava em surdina da pobreza extrema neste canto da Europa.
Não havia dinheiro, e o que havia dos patriotas do dia anterior, escapava-se para a Suíça ou Brasil. As câmaras municipais nem um automóvel tinham, e quando era preciso ir a Lisboa falar com alguém do governo provisório, onde se entrava sem empresas de segurança, lá se ia de táxi, num país que ainda só tinha uma auto-estrada de Lisboa a Vila Franca. O presidente da câmara, da comissão administrativa, não tinha qualquer vencimento. No caso de Arraiolos tinha sido escolhido o Dr. Gil Batata Neto, que foi também o primeiro presidente da câmara eleito, mas que teve depois que optar, por ser magistrado.
Retiremos um pouco a emoção das vivências e atentemos novamente em extractos das actas da câmara a seguir ao 25 de Abril, onde abundam os exemplos de participação:




[...] o senhor presidente expôs, a seu ver, qual a melhor forma de actuação tendo a Comissão deliberado, por unanimidade, adoptar o procedimento tipo colegial , baseado em trabalho de grupo, através do qual as deliberações, decisões e responsabilidades a todos pertençam, igualmente, e resolveram ainda que para esse trabalho de grupo que se pretende aberto, livre, isento e responsável, é necessário a colaboração e apoio de todos os organismos e pessoas do concelho, cujas sugestões e críticas se procurarão, inclusivamente, através de reuniões num programa a estabelecer nas várias freguesias.[1]

[...] o senhor presidente referiu que no passado sábado dia dois de Agosto se deslocara a Lisboa juntamente com o chefe da secretaria para fazer a entrega das propostas abertas em sessão de 31 de Junho último e verificar o estado em que se encontram as diligências e apreciação do processo de construção da escola do ciclo preparatório.[2]

Referiu ainda o senhor Presidente a necessidade urgente da criação das mesmas comissões de moradores em todas as freguesias do concelho, e que as mesmas devem existir não em nome tão simplesmente, mas constituírem núcleos verdadeiramente assistidos de espírito de criatividade, actividade ininterrupta e capazes de lutar pelas necessidades e anseios das suas populações e que só assim as poderá conceber integradas no processo democrático revolucionário em que estamos incluídos. Sobre o assunto alegou ainda o Sr. Presidente que quanto mais válidos forem os elementos das mesmas comissões eleitas pelas populações, melhor estarão resolucionadas as suas aspirações, quer resolvendo sós os seus problemas quer recorrendo à Junta de Freguesia e Câmara Municipal quando a natureza dos mesmos o justifica.[3]

[... ] deu ainda conhecimento de que o povo de Santana do Campo correspondendo ao apelo do primeiro ministro Brigadeiro Vasco Gonçalves trabalhou na sua totalidade no passado Domingo, dia seis, tendo procedido na sua totalidade à limpeza de todas as ruas da povoação, caiaram a escola, a fonte, o lavadouro público e a Igreja locais quotizando-se entre os seus elementos para a compra dos materiais necessários para estes serviços, como cal, tinta, pincéis etc., e, por outro lado, todos os que trabalharam em ocupações remuneradas têm estado a entregar o produto desse trabalho ao Governo da Nação para a reconstrução nacional [... ] [4]

«[...] reparação de ruas em Santana do Campo para o que a população contribuirá graciosamente com os terrenos e até árvores que seja necessário derrubar, prescindindo de quaisquer indemnizações devidas por esta obra, solicitando apenas que a Câmara Municipal forneça os materiais necessários [através da Comissão de Moradores] »[5].

[1]Livro de Actas da Câmara Municipal de Arraiolos, Acta de 22-07-1974.
[2] Livro de Actas da Câmara Municipal de Arraiolos, Acta de 05-08-1975
[3]Livro de Actas da Câmara Municipal de Arraiolos, Acta de 03-06-1975
[4] Livro de Actas da Câmara Municipal de Arraiolos, Acta de 15-10-1974
[5] Livro de Actas da CMA, 09/03/1978

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Antes das eleições 2

Há uns anos fiz um estudo sobre o Concelho de Arraiolos. Uma das freguesias é a antiga vila de Vimieiro. Houve uma altura, durante o Estado Novo, em que se pensou fazer levantamentos para futuros planos de urbanização, em algumas terras. Vejamos uma situação típica de uma freguesia, que não era das piores, pois que em relação a outras terras mais pequenas nem sequer se pensava em qualquer possível projecto.
Os extractos do texto não são memórias avulsas mas de um documento oficial, do Ante-Plano Geral de Urbanização de Vimieiro de 1948, ainda o consulado de Salazar estava longe de ter acabado, mesmo já sendo longo nesta época. Resta dizer que a situação demoraria a evoluir, que a maior parte das terras deste país nem sequer tinham um carro com uma mula para os despejos:

Os dejectos são atirados para os quintais para estrumeiras que ao atingirem 1 m3 , aproximadamente, são retirados para o campo. Igualmente se procede com o estrume proveniente das cocheiras.
Na falta de quintais são os dejectos entregues ao carro municipal que todas as madrugadas percorre a vila.
As águas sujas e outros líquidos provenientes das habitações, são lançados nas regueiras.
Nas trazeiras das residências existem quintais de maior ou menor dimensão, onde se encontra em geral a cocheira que quase sempre é um barracão separado da construção principal.
[... ]
Principalmente nos meses quentes nota-se a abundância de moscas e mosquitos cujo desenvolvimento se faz nas estrumeiras, nas cocheiras e nos líquidos depositados na valeta central das ruas e na Ribeira que corre junto da povoação.
[1]
[... ]
Quase todas as ruas têm valetas centrais por onde correm as águas e detritos provenientes das habitações, urinas de animais, etc. As regueiras não fazem escoamentos por se encontrarem em mau estado, com buracos onde a água fica retida.
[... ]
A limpeza das regueiras é em geral feita pelas donas de casa fronteiras
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[1] Ante-plano... pp. 34 e 35
[2] Ante-plano... pág. 49,

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Antes das eleições

Era pequeno, teria ainda uns dez ou onze anos, quando ouvi falar de eleições para as câmaras e isso despertou-me a curiosidade. Calhou em conversa, não sei porquê, o meu pai falou-me, numa voz um pouco baixa, que em França, que eu só conhecia do mapa e das minhas viagens imaginárias, havia eleições para as câmaras municipais e debates públicos entre candidatos. Não sei se utilizou a palavra debate, que não era muito usual nem permitida, ou discussão, palavra também pouco querida ao regime.

Na casa do meu tio Jica, logo à entrada da casa, onde ele fazia os seus trabalhos de alfaiate, à noite havia sempre uma pequena tertúlia, o meu pai, uns funcionários das finanças e outros amigos. Aí também ouvi intrigado falar de que antigamente havia eleições. A luz era fraca, normal para a época, talvez menos que o suficiente para o meu tio passar a ferro ou marcar calças e casacos com giz, mas chegava ou até facilitava as conversas calmas que aqui se faziam, seguidas de silêncios pensativos, dentro de certas normas, que o meu tio-avô era considerado um homem sério e gostava de respeito e que cada um falasse e fosse ouvido no tempo próprio. Mas tinha sentido de humor, sem gargalhadas, e era um grande contador de histórias reais e respeitava-me tal como aos adultos, embora não desse largas à confiança. Não me atrevia a mexer em qualquer peça das que ele utilizava para os fatos, embora me apetecesse mexer naquelas grandes e variadas tesouras.
O meu tio Jica, chamava-lhe a família assim por ser o mais novo de uma geração, era para os outros o senhor João Simas e para a minha avó o mano João. Aprendeu a profissão com o meu avô, irmão mais velho. Era tio e padrinho do meu pai, também João, o meu pai foi padrinho de casamento de uma filha, que teve também uma filha Maria João, eu também herdei o mesmo nome, tal como o meu filho mais velho e um sobrinho meu, e mais tarde vim a comprovar que em várias gerações anteriores havia sempre um João.
Nessas histórias ouvidas ouvi falar da República onde havia eleições e greves, de que ele não gostava, pela balbúrdia e desordem, palavra que me espantou também, porque me parecia até aqui uma impossibilidade. Mas a conversa não foi muito além, porque eram assuntos proibidos. Mal sabia eu que, mesmo em Sousel, onde isto se passava, poucos anos antes tinha também havido greves clandestinas, de trabalhadores a lutar pelas oito horas de trabalho e pelo fim do trabalho de Sol a Sol, levando pancadaria e prisões por “actos de subversão” e conspirações “comunistas”.
E essas coisas faziam-me também pensar porque é que o presidente da câmara era o senhor B, nomeado pelo governador civil, que era da mesma terra, um presidente que quase nem sabia falar nem mostrava grandes dotes de inteligência nem capacidade de trabalho sequer para ele. Também para que serviam aquelas câmaras? A sede de concelho já tinha água, mas não em todas as casas e no Verão faltava todos os dias, de tal modo que a minha mãe ainda apanhou febre tifóide causada por essas águas pouco desinfectadas. As outras freguesias nem isso tinham, a maior parte das ruas eram em terra, a electricidade ainda não era um bem comum, a câmara tinha meia dúzia de funcionários …? E esgotos? Havia nalgumas ruas na sede de concelho, noutras havia umas valas, abertas a picareta, à espera que viessem melhores dias ou subsídios para enterrar as manilhas. Claro que os esgotos iam mais ou menos a céu aberto parar ao ribeiro mais próximo, que a palavra ambiente não era muito usada e quase ninguém tinha ouvido falar de Ecologia. As poucas ruas que tinham calçadas já as tinham há muito, havia uma avenida por onde passava a estrada principal com uma calçada de paralelepípedos, provavelmente fruto daquelas obras de quando o desemprego era insuportável e as câmaras arranjavam estes trabalhos com salários ainda mais baixos, mas apenas para aqueles que se portavam bem e agradeciam de chapéu na mão. Nas outras, era pó no Verão, que alguns vizinhos regavam com alguma água das limpezas, e lama no Inverno, misturada com as bostas das mulas e machos, a força motriz das carroças e das charruas e as caganitas dos rebanhos de centenas de ovelhas que atravessavam a vila, conduzidas por pastores com imensos cajados, pelico e safões. Como as pedras andavam à solta, sempre serviam para facilmente grupos de rapazes andarem à pedrada entre eles ou atirarem aos gatos e pássaros e algumas mais afeiçoadas até poderiam ter a mesma função que o jornal que era o papel higiénico da época (algumas descrições que amin Malouf faz das aldeias do Líbano, não andam muito longe destas). Nesse tempo não havia gatos mansos na rua, tanto fugiam dos rapazes como dos inúmeros cães vadios ou de donos intermitentes, aqueles caçadores que só se interessavam por eles durante a época.
Para além disso, todos tinham medo do senhor C, que vivia num palacete barroco, grande proprietário, homem extremoso na defesa do regime. Vim a saber mais tarde outras coisas sobre dezenas de votos que ele pôs nas urnas a favor de Américo Tomás que oficialmente venceu Humberto Delgado, quando se sabia em surdina que era o contrário. Mas ainda me lembro de ver os trabalhadores ao sábado à noite, à espera de receberem a jorna, enquanto esperavam que ele jantasse e, depois destas desoras e desespero, receberem a notícia do alto da varanda, que viessem no dia seguinte, que já era tarde. E, em silêncio e de chapéu na mão lá iam, que ele tinha muitos poderes e muitos conhecimentos. A ninguém, com famílias, agradaria um futuro de maltês, sem emprego sequer precário nem aqui nem na maior parte do Alentejo, onde ele e outros tinham parentes e amigos.
E havia terras bem piores!

São ainda recordações destas que me fazem levar a votar e a participar, nem que seja com actos mínimos, na construção de um melhor presente, onde todos tenham um lugar como cidadão.