quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Escutas em restaurantes


Confesso que não me informei devidamente sobre a matéria e que pouco me interessa o que classifico à partida, salvo melhor informação, como baixa política.
Não gosto da política deste primeiro-ministro, nem simpatizo pessoalmente com ele, nem sequer gosto das técnicas do discurso usadas, mais parecidas com as de um vendedor em que falta autenticidade. Socorro-me, a propósito, de um exemplo de homem da política para explicar melhor:
Churchill era conservador, arrogante, colonialista, coisas de que não gosto, mas soube fazer frente ao nazismo não hesitando em fazer alianças com regimes que até tinha combatido. Tinha convicções e soube escolher. Mas não era nada inocente. Hoje nem na Inglaterra nem na maior parte do mundo ocidental seria escolhido, porque tinha defeitos que actualmente não são tolerados: fumava insistentemente charutos caros, comia e bebia demais e certamente diria algumas asneiras durante os almoços. Aí apraz-me ver que se apresentava como humano.
Vem isto a propósito de um escândalo que anda por aí porque o primeiro-ministro num almoço com amigos disse umas coisas e um jornalista ouviu, escreveu uma crónica que não foi publicada, mas foi publicada, e mais o diz que disse, mais a vitimização e etc. etc. Para já, acho que há alguma falta de pudor até em ir para um restaurante ouvir as conversas dos outros. Eu, por mim, quando vou a um restaurante ou a uma tasca, esqueço-me momentaneamente da conta que irei pagar e quero é gozar o que como e bebo e as conversas com os amigos e, se calhar, digo e oiço também algumas alarvidades, com algum respeito pelos que estão à volta, mas sem pensar nas virgens impolutas que não podem, pelo menos nestes lugares, ouvir palavras menos sacrossantas, com os seus ouvidos atentos. Como ao telefone com amigos, se me apetecer também falo mal dos juízes, dos polícias, dos padres, das freiras, dos parvos e até dos amigos. Certamente há coisas que digo em privado mas que não escreverei nem direi em lugares oficiais. Faz parte da liberdade pessoal e ninguém tem nada a ver com isso, nem um sistema judicial que se deve reportar às suas funções e ser eficaz, que é para isso que os cidadãos pagam impostos, e não deixar escapadelas fora do contexto.
Num país que durante 48 anos se aguentou com bufos e pides, aldrabões de vária ordem armados em puritanos, que deixaram este país na maior miséria da Europa até 74, custa-me a sobrevalorização das escutas, as fugas parciais e a conta-gotas em momentos estrategicamente determinados por poderes que não dão a cara.
As coisas têm que ser provadas com factos, com uma justiça célere, em que o objectivo seja a preservação do bem público e não a coscuvilhice que deixa marcas e suspeitas. Que o primeiro-ministro, o presidente da República, o arcebispo, o juiz ou outro qualquer arrotem, pouco me incomoda, desde que não cheire demasiado. O que me preocupa é a política que fazem, excepto a do arcebispo que deve é cuidar de outras coisas num Estado laico ou o juiz que faça Justiça.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Misticismos e mitos fundadores nas Astúrias


O reino das Astúrias foi o primeiro reino da chamada reconquista cristão face ao poder islâmico. Entraram facilmente os muçulmanos em 711 na Península (a Hispania ou as Espanhas) e até com apoios locais ou pelo menos com a aquiescência de muitos povos que preferiram o poder dos novos senhores menos opressivos que os descendentes dos visigodos em guerras civis constantes. Afinal, estes novos senhores nem sequer eram assim tão estranhos pois quando aqui chegaram eram herdeiros e continuadores das culturas e civilizações do Mediterrâneo, de vastos territórios do Império Romano, cristianizados antes, como a Síria (recordemos o grande impulsionador do cristianismo, S. Paulo que se converteu na estrada de Damasco), Palestina, Egipto e restante Norte de África, por sua vez herdeiros da cultura helenística e de outras mais antigas que se foram mesclando. Linguagens e saberes, formas de estar comuns à maioria da Península, com algumas excepções como as montanhas do Norte, onde até hoje resistiram línguas milenares como o basco. Erroneamente chamam-lhes árabes, tomando a parte pelo todo, pois que muitos eram de outras partes do novo império, sírios por exemplo ou mouros berberes do Magrebe, muitos recentemente convertidos, passando directamente do cristianismo (monofisita em particular) para o islamismo.

   A civilização islâmica era essencialmente de cariz urbano e comercial, com uma agricultura e artesanato inovadores direccionados essencialmente para o mercado. Por isso, a esses novos senhores interessavam sobretudo as cidades do Sul, os terrenos agrícolas onde antes havia villae romanas ou alguns territórios produtivos do Norte como a antiga Galaecia romana, que incluía parte de Portugal. Tal como os romanos foram deixando os montanheses mais ou menos auto governados, até porque estes montanheses sóbrios eram guerrilheiros que davam trabalho a submeter.

   É neste contexto que se forma o primeiro reino asturiano que ao longo de séculos vai dar origem aos reinos de Leão, Castela, Portugal… que vão reivindicar a memória visigótica e o cristianismo, erguendo a Cruz (in hoc signo vinces) e o apóstolo Santiago, que se há-de transformar em Mata Mouros.
O pai, o rei fundador, é Pelágio das Astúrias, de onde descendem os monarcas destes reinos, entre os quais o nosso, embora o primeiro rei de Portugal seja filho de um francês ou melhor dizendo de um borgonhês, que Borgonha foi uma potência até ao início do Renascimento.
Pelágio venceu os muçulmanos na batalha de Covadonga e fez de Cangas de Ónis a capital do reino rebelde. Quem foi, não se sabe bem. É possível que primeiro tenha sido vassalo do poder islâmico e que se tenha revoltado em 722. Como vassalos do Califado de Córdova foram posteriormente alguns reis e senhores cristãos, embora nem sempre obedientes. Alianças e desavenças eram constantes. Recorde-se por exemplo, séculos mais tarde, D. Afonso Henriques ao tentar conquistar Badalhouce (Badajoz) teve que fugir, mas foi preso e partiu uma perna, porque o seu primo, tão cristão como ele, Fernando de Leão, veio em auxílio dos muçulmanos de Badajoz, ou o mítico Giraldo que conquistou Évora mas se passou para o lado dos muçulmanos, tendo sido morto em Marrocos.



E é a partir do Reino das Astúrias que se inicia a "Reconquista"cristã. Curiosamente uma das regiões menos cristianizadas na época, onde conviviam práticas cristãs (e Roma ou Constantinopla ficavam muito longe) e Toledo era domínio muçulmano), com práticas pagãs de religiões ancestrais.
Covadonga é um lugar místico. Inserida numa área de altas montanhas que descem abruptamente até ao mar é nela que aparece uma Nossa Senhora, como antes já tinha aparecido uma deusa, numa gruta de onde jorra água. Grutas e fontes são sempre símbolos femininos e estão sempre associadas a divindades femininas, desde a Deusa Mãe, que tantas vezes mudou de religião. Acrescentem-se outros elementos misterioso e telúricos como as montanhas, a neve e o nevoeiro que levam os homens a sentir a sua pequenez, o fraco, transitório e fugaz poder e temos todo um ambiente mágico e perturbador, que nos leva ao confronto connosco e com a Natureza e ao prazer dionisíaco da nossa matriz selvagem (de silvis, oposto à civilização) e pagã.
O mito popular tornou-se mito fundador e legitimador dos novos reinos. É constantemente reinterpretado e usado, novamente a partir do século XIX pelo nacionalismo espanhol (contra a fragmentação perturbadora de outros nacionalismos primeiro românticos e depois eficazes, como o catalão ou o basco) e pelo catolicismo ultramontano, contra as correntes ateístas e agnósticas ou reformadoras da nova sociedade industrial, exacerbadas pelo franquismo que venceu a luta entre a “Espanha Vermelha” contra a “Espanha Negra”.
Hoje o turismo e a modernidade reabsorvem todas estas contradições que são aliás inerentes aos mitos. E as montanhas restituem-nos esse ideal de pureza ainda não conspurcada.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Crónica biscainha, ou impressões do País Basco


  (esta já é na Cantábria)
Estive há dias em Bilbau. Ideias anteriores havia muitas. Queria ver o Museu Guggenheim e pouco mais. Imaginava uma cidade rica, mas um pouco escura, fruto da Revolução Industrial, coisa rara na Península Ibérica. Do País Basco já tinha algumas imagens visuais, uma antiga, em que ao passar por lá em Setembro, nos anos setenta ainda, por estradas entre montanhas, verdes sempre, porque sempre chovia, depois de atravessar uma Espanha semidesértica, S. Sebastian foi em tempos uma revelação: montanhas, mar e rio, numa cidade viva.  Hei-de lá voltar um dia, embora tenha passado ao lado várias vezes. Outras vezes também atravessei na auto-estrada e vi cidades mal construídas à beira da estrada, com chaminés fumegantes. Há dois anos até, entrei num bar, perto de Donostia (S. Sebastian) e, sinceramente, fiquei mal impressionado: cheiro a fritos, um barulho impressionante para quem chega de França, papéis e beatas no chão, dois polícias bascos com ar ostensivo, com pistolas bem à vista.
   As impressões são míticas e ideológicas e contraditórias. Há muito que simpatizo com os ideais de resistência de muitos bascos, a sua persistência na manutenção da identidade, embora muito dessa identidade tenha sido reconstruída a partir do século XIX, mais ainda que a catalã. Impressiona-me ainda a resistência basca durante a Guerra Civil, a luta contra um dos piores fascismos da Europa (o franquismo massacrou muito mais gente que o fascismo italiano e durou muito mais tempo; décadas, uma vergonha para a democracia). Até os padres bascos foram fuzilados em massa, crime perpetrado por um regime que se proclamava católico, mas que não hesitava em usar tropas mouras para chacinar espanhóis, apesar de usar uma ideologia de cruzada contra os mouros em nome da fé católica.
Hoje continua a ETA que força a identificação do País Basco com a sua actividade. Esta organização mudou ao longo dos tempos e hoje está longe do que em tempos foi, assumindo práticas bombistas até contra incautos e inocentes e práticas até xenófobas.
   Mas deixemos isso. Gostei de Bilbau! Gostei do atrevimento arquitectónico do museu Guggenheim e de outros edifícios e espaços modernos, também uma mostra de um nacionalismo e cosmopolitismo basco que não precisa do poder central.
   E gostei do movimento das ruas de Bilbau, tanto da novíssima Bilbau, como da Bilbau do século XIX em diante, como do “casco” velho que continua vivo e vivido. Em poucas horas experimentei a simpatia dos bascos, em pequenos episódios. Vinha eu de Santander (Cantábria) quando um camião soltou uma pedra para o vidro do pára-brisas. Fiquei preocupado, porque existe a possibilidade das estrias irem alargando. Por um engano qualquer, daqueles que acontecem aos viajantes, fui parar a uma zona industrial. Parei numa oficina e o empregado ou patrão imediatamente me indicou outra oficina onde reparavam vidros com uma resina própria; fui a essa e também um empregado simpático disse-me que não havia problemas e entretanto deu-me outras indicações sobre Bilbau. Mais tarde, depois do Guggenheim e cidade nova fui à cidade antiga, visitei várias coisas entre as quais a catedral e Plaza Mayor, vi uma manifestação com frases em basco que evidentemente não percebi (mas pareceu-me que era sobre presos), um início de desfile de Carnaval, uma tapas que provei e, pensei comprar uma “mítica” boina basca (que afinal não é como as boinas militares). Dirigi-me a uns senhores dos seus setenta e perguntei-lhes onde poderia encontrar. Tinham algumas dúvidas sobre o local mais indicado, discutiram entre dúvidas, explicaram-me que havia vários tipos e lá me deram indicações. Não encontrei logo a loja mas, entretanto vi outro senhor à entrada de uma loja de roupas (percebi que a mulher estava lá dentro e ele um pouco enfastiado. Acompanhou-me durante um quarteirão até mostrar onde havia e, de acordo com as informações dos outros e dele, lá comprei uma boina “Tchapela Elósegui”.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Fotografia de 1933/44


   Encontrei esta fotografia no Facebook, na página dos Antigos Alunos do Liceu de Évora. É interessante ver a evolução destas fotografias. São quase sempre no claustro, onde hoje é a Universidade e onde foi a antiga Universidade dos Jesuítas, na escadaria, tendo como fundo a Sala dos Actos e as colunas. Em muitas delas aparece o Reitor, professores, um ou dois funcionários, entre os quais o senhor Francisco, chefe dos contínuos, o homem que tocava a sineta para o início e fim das aulas, sempre solícito e prestável, encarregado de educação de muitos estudantes deste Alentejo. As fotografias são formais, mas a formalidade evolui com o tempo. Em tempos mais antigos, os rapazes tinham que andar de capa e batina, as raparigas com vestuário discreto. Mais tarde as raparigas usam bata e os rapazes vão ficando com o vestuário quotidiano. Tudo evolui, do vestuário ao penteado, até à pose menos formal, com a banalização da fotografia, já nos finais do regime.
   Esta fotografia é de 1933/34. Ano terrível da História da Europa, com a ascensão do nazismo, com a implantação do Estado Novo em Portugal, formalizado por uma constituição corporativista, o Estatuto do Trabalho Nacional, com a fascização dos sindicatos, o Acto Colonial, com a “missão civilizadora”, que dividia as gentes das colónias em portugueses, assimilados e indígenas …
O Liceu de Évora, ainda chamado Liceu Central André de Gouveia, era o único do distrito, mas atraía alunos de outros, de concelhos de Portalegre ou de Beja. Poucos! O ensino era ainda elitista, a maior parte não estudava ainda. Recorde-se que por essa altura havia mais de 50% de analfabetos, quanto mais alunos nos liceus. Neste edifício funcionava no claustro do rés-do-chão, o Liceu, no segundo andar a Escola Técnica, evolução a partir da Casa Pia, que se situava num segundo claustro e ainda existiam outros serviços, como o Arquivo Distrital. Assim se resumia o ensino secundário oficial no distrito! Para diferenciar, os alunos do Liceu eram obrigados a andar de capa e batina.
   Esta fotografia emocionou-me porque está ali o meu pai, o primeiro do lado esquerdo, por baixo da coluna. E está ali, porque havia uma família solidária, de outro modo não teria estudado. Um tio e duas tias, irmãs da minha avó, moravam em Évora, onde tinham uma loja de fazendas na Praça do Giraldo. Protegeram os sobrinhos, sobretudo sobrinhas que foram estudando em Évora, alugaram quartos a parentes que também foram estudar. Uma das tias achou que o meu pai também merecia e foi assim que veio para esta cidade.
   Na fotografia está também um antigo ministro da Justiça e professor de Direito, Antunes Varela, natural do Ervedal. Foi colega do meu pai desde a escola primária. Outra história que relembra  também a solidariedade familiar. Os meus avós viviam no Cano, concelho de Sousel. Havia algumas dificuldades em os alunos da escola primária fazerem a 4ª classe. O ensino obrigatório, e não era obrigatório para todos, ia até à 3ª classe. Segundo consta, o professor primário do Cano estava zangado com o de Sousel, onde os alunos do concelho fariam exame da 4ª classe. Uma tia, desta vez, do lado paterno, casada mas sem filhos, levou o meu pai para a escola primária do Ervedal.  Era a mais velha dos irmãos e já tinha ajudado alguns deles a obter uma profissão (ao que parece o meu bisavô era bem disposto, mas não demasiado preocupado).
   E foi assim que o meu pai veio parar a esta fotografia.