quarta-feira, 16 de março de 2016

As Alterações de Évora, segundo D. Francisco Manoel de Mello

Além de Severim de Faria, também D. Francisco Manoel de Mello escreveu sobre as Alterações de Évora de 1637, também conhecidas como a Revolta do Manuelinho. Estes motins, que depressa se generalizaram a todo o Alentejo, Algarve e Beira Baixa, foram eminentemente populares, como mostra o texto, e entre os vários motivos estavam o aumento crescente dos impostos (pagos pelo terceiro estado) para manter uma coroa que estava em guerras sucessivas, intermitentes ou cumulativas com algumas potências já importantes ou emergentes, como a Inglaterra, as Províncias Unidas (Países Baixos) e a França, com batalhas tanto em várias terras da Europa, como na América (tanto nas Índias castelhanas, como no Brasil e Maranhão) e noutras Índias, e  revoltas internas em várias regiões ou reinos associados (no séc. XVII, na Catalunha, Portugal, Nápoles e antes na Holanda ...).  Não se tratava de um estado unificado ainda, mas da união de muitos diferentes reinos, cada um com as suas leis e autonomias. A opressão dos povos, fazia com que o poder fosse cada vez mais associado ao poder castelhano e assim cresce o nacionalismo português, não da mesma forma para todos, porque muitos populares vêm estratos da  nobreza associados à política centralizadora do Conde-Duque de Olivares.

   De salientar as diferentes posições de portugueses neste contexto em que se desenrolam "em crescendo" os motins, os de "ofícios mecânicos" que D. Francisco chama também "Povo" "vulgo", "da peor gente da Republica". Aparecem também várias categorias de nobres, titulares, injuriados e suspeitos de apenas quererem manter os seus privilégios, ou membros da Câmara, assim como diferentes posições do clero, como o arcebispo também injuriado ou o papel ativo dos Jesuítas a favor dos populares. Assinam-se decretos e panfletos em nome de um Manuelinho, louco da cidade que ninguém poderia responsabilizar.
Assim fica a cidade ingovernável, no sentido tradicional e fica a cidade com três "governos", identificados com os diferentes estratos sociais:

 "De sorte que dentro da propria Cidade (cousa jâ mais vista) cõcorrião todos os tres modos do governo q asinão os Politicos: o dos nobres, q em lugar del Rey, sinificava o modo Monarquico, sempre cõtinuava cõ suas conferẽcias; o da Camara, que não desistindo de seu exercicio competente, representava o modo Aristocratico; e o do Povo, que em beneficio da liberdade proclamada, exercia hum Regimento comũ, por modo Democratico; donde qualquer do vulgo tinha igual autoridade, que o mais sábio, ou poderoso."

Mesmo assim, apesar da participação da "a pior gente da República", e apesar da pobreza, não houve notícia de roubos ou assaltos para proveito próprio. 

Extractos das Epanáforas ... 

   Obravão todos os Corregedores do Reyno, segundo suas ordens; e a nenhum erão jâ ocultas as grandes dificuldades, que o Povo oferecia a seu comprimento. Entre os mais, o Corregedor de Evora Andre de Moraes Sarmẽto, de profissão Legista, tratava com desregrado zelo, o assentamẽto do novo serviço, e repartição dos efeitos, que para seu cobro tocavão a sua Comarca. Havia já proposto tudo á Camara de aquella Cidade: donde os Vereadores della, â custa da vontade del Rey, e do clamor do Povo, igualmẽte mostravão desejo de obedecer, e resistir; porque de hũa parte, a obrigação de bons Vassallos, e da outra, a de bons Patricios, os dividião, e equivocavão, em tão contrarios efeitos.

 Pareceo, que a mayor impossibilidade, consistia na vontade do Povo; porque como consta de numero incapaz de castigo, soborno, ou conselho, he de ordinario, oposto a todos os respeitos politicos. Quiz então o Corregedor, encaminhar a obediẽcia das cabeça populares, e fez chamar diãte de si ao Juiz, e Escrivão do Povo, em os quaes de algũa maneira, entre nòs se reparte a autoridade de aquelle oficio, [A29] que os Romanos chamârão: Tribúno da Plebe. Erão seus nomes destes, Sesinando Rodrigues, e João Barradas, ambos da ordem mecanica; e que assi pellos lugares que tinhão da Republica, como pello credito de amadores da liberdade, se estimavão as pessoas de mayor poder, entre a multidão de aquelle Povo numeroso, e soberbo[…]

 A novidade de aquella diligencia, que o Corregedor intentâra com os dous Populares, a que tambem se ajuntava a prâtica comũa, que jà corria pello Povo, das novas imposiçoens que lhe repartião; abalou grande cantidade de gente em seguimento dos dous chamados, ou fosse por segurança, ou (que he o mais certo) para atemorizar com seu numero, o executor da violencia, que temião. Todos estes accidentes ameaçadores á Republica de custosa novidade, desconheceo, ou desprezou o Ministro real, contra quem se prevenião: procedendo em persuadir aos Populares, que tinha encerrados em seu proprio aposento, jâ com promessas, jà com ameaços, antes que convertidos â multidão, tornassem a participar do espiritu de sua variadade. […] Dizem, que então indignado o Corregedor à vista de tanta dureza, soltou palavras de grave injuria contra todo o Povo de Evora, e fez demostraçoens, de q queria enforcar, como o havia jurado, aos dous q tinha presentes[…]

 Então Sesinando, q era homẽ mais deliberado, chegandose à janela da propria casa em q se achavão, q como preparada ao movimento, olhava para a praça da Cidade, pedio em altas vozes socorro ao Povo, dizendolhe: Que morrião pello livrarem do trabalho que lhe querião dar os Ministros del Rey.  De nenhum se pode afirmar, ouvio inteiramente a voz do Juiz do Povo, segundo estavão todos dependentes de seu aceno.

 Quando com subito estrõdo, ardendo todos em ira, clamârão a morte do Corregedor [A31], e liberdade, e vida dos Populares. A hum mesmo tempo se levantou a voz, e a força; e quasi sem espaço de tempo, era entrada, e acesa a casa de aquelle Ministro. Duvidase se a furia do fogo, ou da gente, andou mais pronta em sua ruìna. O Corregedor alterado, confuso, e medroso, só intentava escapar a vida, que pode conseguir, ajudado de algũs nobres, e Religiosos, que logo o socorrerão, e industriosamente o trespassárão ao Convento de São Francisco; donde despois em habito diverso sahio da Cidade, e passou á Corte; e nella experimentou a fortuna dos que se perdem entre ruins sucessos, cuja direcção, nem por boa, se salva no Tribunal dos Juizos humanos, que só olhão os fins, e não os meyos de nossas acçoens. Porèm o Povo mais indignado, com esta fugida, aumentava suas desordens cõ mayores delitos. Afirmase por cousa rara, que toda a prata, ouro, e dinheiro q despojavão, queimarão na Praça sem algum respeito, como cousa pestifera, não havẽdo entre tãta multidão (q constava da peor gente da Republica) hũa só pessoa, que se movesse a salvar por seu proveito qualquer joya, das que outros entregavão ás chamas tão liberalmente. Tal era o odio, que pode mais que a cobiça, mais poderosa que tudo. Passou adiante o dano, e forão trazidos ao fogo todos os livros reaes, que servião de registro aos dereitos publicos; romperão as balanças dõde se cobrava o novo imposto da carne; devassárão a cadea, dando liberdade aos prezos de quem esperavão [A32] ser ajudados, saqueàrão os Cartorios, desbaratando papeis, e livros judiciaes. Porèm em todas suas acçoens, se mostrou sempre mayor â indignação, que ó interesse[…]

 Porém contra a mesma igualdade, que dos nobres foi observada naquelle trance, alguns tinhão para si, que â gente principal não desprazia aquella demostração, porque sendo nella o perigo só do vulgo, que intentava a resistencia, vinha a ser comum o fruto de aquelle movimento, se por elle se conseguisse a emenda dos males, que cõtaminavão a Republica. Outros entẽdião (não peor) que a nobreza só fora quẽ detivera a furia do Povo, em cuja cegueira não tinha lugar nenhũ respeito. [A33] Todavia vendo os grandes, e nobres de Evora, que sua inquietação passava jà de vingãça, e que âs vozes havião sucedido as armas; se ajuntárão em a Igreja de S. Antão, antiga, e principal freguezia da Cidade, o Arcebispo D. João Coutinho, D. Diogo de Castro, Cõde do Basto, Visorrei q fora de Portugal, D. Francisco de Mello Marques de Ferreira, D. Rodrigo de Mello seu irmão, D. Francisco de Portugal Conde do Vimioso, D. Francisco de Lencastre Comẽdador mór de Avìs, e D. Jorze de Mello. Entre os quaes tratãdose o remedio do sucedido, se intentârão varios meyos dirigidos á presente moderação, e para o que podia suceder, se despachàrão os avisos necessarios. Porèm, como a primeira diligẽcia convinha ser o socego de aquelle multidão, que cada hora se achava mais atrevida e resoluta; se começou com brandas práticas a tratar a redução do Povo. Deziãolhes: Quizessem deixar tudo ao cuidado da Camara, a quem tocava a causa publica, pois a ella, e não a elles pertencia a conservação de sua Cidade. E para que o negocio aparecesse diante del Rey com mais justificação, e autoridade, toda a nobreza que alli se achava presente, se oferecia para interceder com sua Magestade, atè alcançar sobre o perdão algum bom recurso, com que todos ficassem satisfeitos.   Esta proposta não souberão os Inquietos ouvir, nẽ responder, antes convertendo a ira para aquella parte, começârão a temerse da Congregação da nobreza. Por ser causa ordinaria entre os que desordenadamente [A34] seguem hum parecer, julgarẽ por inimigos a quantos lho não aprovão. Queixavãose, e dizião: Que os senhores, e poderosos de Evora, não sentião deshumanamente a execução do Povo de sua Patria, porque não erão do Povo; que para os Grandes, nunca havia novas leys, que não fossem interpretadas em seu comodo; e que ainda contra a observancia das antigas, se armavão de privilegios; porque ou não querião dever, usando de sua franqueza, ou não pagar, abusando de sua autoridade. Que procuravão merecer com o Principe, á custa das ruìnas da patria, e agora se congraçavão com o Povo, para se justificarem despois com el Rey, oferecendo por victima, ao sacrificio de sua fidelidade, o inocente, e simples vulgo, cujo sangue derramasse, como de animaes obedientes, costumava a barbara gentilidade; porèm que havendose justificado com el Rey, serião os mais crueis algozes para o Povo; finalmente, que ou se ajuntassem com os Populares, ou entre si se dividissem, ou procederião contra elles, como contra inimigos do bem publico. Esta tão dura reposta turbou de novo os animos dos Congregados; porque não só prometia o risco da nobreza, mas em o Povo dava mostras de querer passar adiante a mais custosas novidades. Sucedeo então, que sobrevindo as trevas da noite, se esforçârão tanto os inquietos, que juntos forão apedrejar o Paço Arcebispal, injuriando com atrevidas palavras ao Prelado, e sua familia. Outro semelhante, ou mayor tropel, entrou pellas portas do Conde Dom Diogo de Castro, a quem aborrecião, posto que veneravão, sem outra causa, que haver [A35] sido grande Ministro. […]

 Mas em meyo desta confusão, seguião os melhores o parecer dos Padres da Companhia, que entre nòs com grande honra gozão o nome de Apostolos, e são em Evora altamente respeitados, pella concurrencia de sujeitos grandes, que ocupão naquella sua Universidade. [A36] Porém elles, ou fosse pello antigo amor aos Reys Portuguezes, ou porque se não atrevessem a contradizer ainda a furia do Povo, dizem que tacitamente contribuião às esperanças de algũa novidade. […]

Fora poucos annos antes, conhecido em aquella Cidade, hum homem doudo, e dizidor, e por isso [A40] aceitissimo ao Povo, cujo nome era Manoel, e por jogo, e sua notavel grãdeza irònicamente Manoelinho. Usava fazer pràticas pellas ruas ao vulgo; a quẽ com vozes desordenadas, e historias rediculas excitava sẽpre a alegria, dõde procedeo ser na Cidade, e seus contornos, a pessoa mais conhecida; a cuja lembrãça recorrẽdo algũs de aquelles inquietos, foi ordenado entre elles, que todas as convocações, cartas, editos, e ordẽs, se despachassem debaixo do sinal de Manoelinho de Evora; porq assi se escusava de ser jà mais conhecido o Autor destas obras; ficando aquelle nome, desde então, constituido por sinal publico, para que se pudessem entender sem confusão, em seus chamamentos. Nesta observancia amanhecião cada dia fixados pellas praças, e portas da Cidade, Provisões, Bandos, e Decretos pertencentes ao estabelicimento de sua defensa[…]



 D. FRANCISCO MANUEL DE MELO,EPANÁFORAS DE VÁRIA HISTÓRIA PORTUGUESA,    
EDIÇÃO SEMIDIPLOMÁTICA POR  EVELINA VERDELHO