sábado, 2 de novembro de 2013

Honra à sua memória.


As Alterações de Évora de 1637 foram fundamentais para o processo que levou à Restauração de 1640. Foram motivo de grande preocupação para a monarquia, dado o exemplo que se poderia seguir nos outros reinos do mesmo monarca, o que de facto aconteceu: em 1640 estala a grande revolta da Catalunha, começada pelos camponeses que afluíram a Barcelona, “Els segadors” (os ceifeiros). Ainda hoje o hino da Catalunha é a eles dedicado.

A revolta amedrontou a nobreza portuguesa, uns ficaram em casa discretamente, como o Duque de Bragança, outros continuavam na corte em Madrid ou nos exércitos espanhóis na Flandres, Itália etc., outros ajudarão na repressão. Mas era comum da parte da nobreza o desprezo pela gente vil e sem nome e pelos “arruaceiros”, os pícaros da rua, gente de ofícios mecânicos, inferiores a eles, que eram de mãos limpas. (as expressões em itálico eram assim usadas no Antigo Regime, algumas das quais nestes extratos). Mas repare-se o espanto: revoltavam-se, eram pobres mas não roubavam nada, apesar de, no momento terem tudo nas mãos. Mas os inquietos destruiam balanças, ecritos etc. que punham em causa as fontes de rendimento da monarquia e da nobreza, os privilégios e o seu papel na manutenção da ordem.

Repare-se também na posição do duque de Medina Sidónia, ele que era irmão da futura rainha de Portugal (aquela de quem se diz que mais valia ser rainha por um dia que duquesa toda a vida): segundo o cronista foi ainda mais duro para com os populares, para mostrar o seu poder, como um dos grandes de Espanha.

Poderia ainda perguntar-se: se não tivesse havido esta revolta teria havido a Restauração da Independência? Será que os catalães teriam feito a revolta de 1640, permitindo que os portugueses preparassem a defensiva, enquanto os exércitos andavam a combater os revoltosos? O que teria sido o Brasil: talvez um conjunto de colónias francesas (os franceses já tinham tentado ocupar o Rio de Janeiro, andavam pelo Maranhão), ou holandesas (estabeleceram-se no Recife) …?


Notas: a negrito enfatizam-se algumas expressões do texto citado de D. Francisco Manuel de Melo, Epanáforas …. As imagens são da atual Praça do Giraldo: uma placa comemorativa na parede exterior da Igreja de S. Antão, com os nomes dos que dirigiram a revolta e a fonte henriquina, coroada por Filipe I de Portugal com a coroa dos Habsburgos.


Porèm o Povo mais indignado, com esta fugida, aumentava suas desordens cõ mayores delitos. Afirmase por cousa rara, que toda a prata, ouro, e dinheiro q despojavão, queimarão na Praça sem algum respeito, como cousa pestifera, não havẽdo entre tãta multidão (q constava da peor gente da Republica) hũa só pessoa, que se movesse a salvar por seu proveito qualquer joya, das que outros entregavão ás chamas tão liberalmente. Tal era o odio, que pode mais que a cobiça, mais poderosa que tudo. Passou adiante o dano, e forão trazidos ao fogo todos os livros reaes, que servião de registro aos dereitos publicos; romperão as balanças dõde se cobrava o novo imposto da carne; devassárão a cadea, dando liberdade aos prezos de quem esperavão [A32] ser ajudados, saqueàrão os Cartorios, desbaratando papeis, e livros judiciaes. Porèm em todas suas acçoens, se mostrou sempre mayor â indignação, que ó interesse.
”[…]
. Queixavãose, e dizião: Que os senhores, e poderosos de Evora, não sentião deshumanamente a execução do Povo de sua Patria, porque não erão do Povo; que para os Grandes, nunca havia novas leys, que não fossem interpretadas em seu comodo; e que ainda contra a observancia das antigas, se armavão de privilegios; porque ou não querião dever, usando de sua franqueza, ou não pagar, abusando de sua autoridade. Que procuravão merecer com o Principe, á custa das ruìnas da patria, e agora se congraçavão com o Povo, para se justificarem despois com el Rey, oferecendo por victima, ao sacrificio de sua fidelidade, o inocente, e simples vulgo, cujo sangue derramasse, como de animaes obedientes, costumava a barbara gentilidade; porèm que havendose justificado com el Rey, serião os mais crueis algozes para o Povo; finalmente, que ou se ajuntassem com os Populares, ou entre si se dividissem, ou procederião contra elles, como contra inimigos do bem publico.
[…]
Fora poucos annos antes, conhecido em aquella Cidade, hum homem doudo, e dizidor, e por isso [A40] aceitissimo ao Povo, cujo nome era Manoel, e por jogo, e sua notavel grãdeza irònicamente Manoelinho. Usava fazer pràticas pellas ruas ao vulgo; a quẽ com vozes desordenadas, e historias rediculas excitava sẽpre a alegria, dõde procedeo ser na Cidade, e seus contornos, a pessoa mais conhecida; a cuja lembrãça recorrẽdo algũs de aquelles inquietos, foi ordenado entre elles, que todas as convocações, cartas, editos, e ordẽs, se despachassem debaixo do sinal de Manoelinho de Evora; porq assi se escusava de ser jà mais conhecido o Autor destas obras; ficando aquelle nome, desde então, constituido por sinal publico, para que se pudessem entender sem confusão, em seus chamamentos. Nesta observancia amanhecião cada dia fixados pellas praças, e portas da Cidade, Provisões, Bandos, e Decretos pertencentes ao estabelicimento de sua defensa: debaixo desta forma, se  escrevião, e despachavão cartas às Camaras do Reyno, se despedião os Ministros de seus oficios, e se acomodavão nelles outros, em virtude de hũ simples provimẽto, assinado por Manoelinho de Evora. […]

O Conselho de Estado de Espanha, ainda que não tão florente, como nos tempos passados, se achava todavia rico de sugeitos de grande prudencia, a quem parecia: Que o açoute soministrado aos Inquietos, se devia reger com grande temperança, olhandose o estado do Imperio, dilatação, e contrastes de Espanha. Que por nenhum modo fosse tal, que estimulados de lástima, ou medo, os Vassallos, que em Portugal se achavão firmes (mais, e melhores) quisessem obrar de maneira, que recebendo todos o golpe, sahisse mais pequeno a cada hum: porque muytas vezes sucede, que a porfia, ou excesso da emenda, estraga pella desesperação [A135] de muytos, muyto mais, que com a pena de poucos remedêa. Que a revolação se não deixasse, nem à ira, nem ao esquecimento, antes q cõ vagarosa, e apressada destreza, se fosse cauterizando aquelle erpe interior, que lavrava pello corpo da nação Portugueza, primeiro que chegasse ao coração, e se fizesse mortal, decepandoo da união da Monarquia. Que o remedio, continha duas partes: a presente de castigo, que se havia de executar logo, e a futura de prevenção, que tambem desde logo, se havia de ir introduzindo. Mas que medidas ambas, não erão de tanta importancia a primeira, como a segũda. […]

Em quanto em Alentejo, e suas fronteiras, ou jà os Ministros das armas, ou da justiça, procedião desta sorte, pello Reyno do Algarve, andava mais soberba a vingança. Estava seu castigo (como dissemos) á conta do Duque de Medina Sidonia, que jâ havia arribado a Ayamonte, com hum suficiẽte troço de exercito, de gente mais lustrosa, que disciplinada. He certo, que aquelle Duque, não tinha outras ordens de mayor rigor, que o de Bejar, acerca da entrada no Reyno; mas ou porque julgandose mais soberano, lhe parecesse q o negocio donde sua pessoa intervinha, della só havia de ser dependẽte, ou porq o Marques de Valparayzo, que o acõselhava, por de terrivel natural, o guiase por caminhos mais asperos, [A137] determinou proceder no Algarve, mais q o de Bejar, em Alentejo, riguroso, e absoluto.
[...]
A Justiça foi proseguindo em suas averiguaçoens, atè proscrever, como Reos de sedição, e cabeças de amotinados, a Sesinando Rodrigues, e João Barradas: pello qual  crime, forão condenados à morte, e em estàtua justiçados, com horrẽdos pregões, e bandos, prometedores de grãde honra, e interesse, a qualquer pessoa, que vivos, ou mortos, os entregasse nas mãos da Justiça. Algũs outros dos que na alteração tiverão menor parte, e por isso menos advertidos se confiárão, forão tãbem presos, econdenados, huns á forca, outros a galés, e desterros perpetuos; mas  todos homẽs vìs, e sem nome, e que os mais erão delinquentes, e por outros delitos merecedores das penas, que só ao caso da sedição referião.

Alterações de Évora e exércitos espanhóis


   Cõstava este exercito de Cãtâbria, de varios terços de Infãtaria Castelhana, quasi toda forçada para [A85] a guerra; a qual entre a aspereza dos montes de Guepúzcua, agora detida dos frios, agora dificultada do aperto dos passos, se conservava, mas sempre com vivo desejo de liberdade. Estimavase seu numero, dentro dos quarteis, em oito mil Infantes, que marchando soltos, e por terras largas, e conhecidas, se diminuìrão de sorte, que antes de arribarem â Estremadura, erão menos de quatro mil, e menos os que chegàrão ao novo alojamento. A mais rigurosa parte de aquellas armas, consistia em hum Regimento de Dragoens: nova milicia entre nós, e que de Alemanha trouxera a seu cargo Dom Pedro de Santa Cizilia, de quem no livro primeiro de nossa Catalunha, fazemos particular menção. Foi nomeado por General deste exercito, o Duque de Bejar, moço de desasete annos; havendose sua riqueza, e estado por suficiencia, disserão: Que por ser o mayor senhor da Estremadura, donde o exercito se juntava, lhe competia o posto[…]

   Mas como já no Reyno do Algarve, mostrava para revolverse mayores designios, foi tãbem mayor o cuidado de se lhe aplicar o remedio; porque os portos, de q aquelle Reyno he abũdante, causavão muyto mais receyo, que suas proprias forças. Por esta razão se ordenou, que o Duque de Medina Sidonia, Capitão General da Andaluzia, ajuntasse da gente de seu cargo, atè seis mil Infantes, e com os ginetes da costa, e alguns voluntarios, formasse outro exercito, com q se avesinhasse ao Algarve.

   O rei Filipe IV de Espanha, terceiro de Portugal estava a braços com várias guerras na Europa e no mundo, Países Baixos, Inglaterra, França e corsários, piratas, contrabandistas, com as remessas de prata do Perú a diminuírem, gastos da monarquia cada vez maiores e resolve, a conselho ou por ordem do seu valido, o Conde-Duque de Olivares, aumentar ainda mais os impostos. Os do reino de Castela já não aguentavam mais, já tinha havido até uma revolta popular no País Basco, a população até diminuía com a fome. Os súbditos dos outros reinos (Aragão, Portugal …)  entendiam que não deveriam financiar as guerras de Castela, invocando as suas leis e autonomia. E, no entanto, os impostos aumentavam e os recrutamentos militares também.

   Depois de outros motins é a vez da grande revolta popular de Évora que se estende pelo Alentejo, Algarve e Beiras: As alterações de Évora, também conhecidas por revolta do Manuelinho..
D. Francisco Manuel de Melo vem ao serviço do rei a Évora e descreve, tal como Severim de Faria os acontecimentos e o contexto.

   O Conde-Duque não confiava muito nos portugueses e por isso envia exércitos espanhóis, apesar da nobreza portuguesa não ter participado nos acontecimentos, opondo-se até aos vis populares, tal como D. João, Duque de Bragança, rei a partir de 1640. É interessante que um dos exércitos, que sai da Andaluzia é comandado pelo Duque de Medina Sidónia, da família Guzman, irmão de D. Luísa de Gusmão e cunhado de D. João, que anos mais tarde haveria de tentar uma conspiração para a separação da Andaluzia, com o apoio do rei de Portugal, que foi paga com a morte do Marquês de Ayamonte (também Guzman), por ordem do Conde- Duque (também Guzman).
O outro exército, não fosse os crimes cometidos, quase caía no ridículo. Segundo o cronista, saí da Cantábria e País Basco com 8000 homens a pé (imagine-se atravessar a Espanha, quase sem estradas) e chega à fronteira portuguesa com apenas 4000, isto é cerca de metade teriam desertado. Ainda por cima é comandado por um rapaz de 17 anos, porque era da família mais importante da Extremadura.

Nota: sublinhados nossos. Ver também texto de Severim de Faria sobre Alterações de Évora

Textos de D. FRANCISCO MANUEL DE MELO, EPANÁFORAS DE VÁRIA HISTÓRIA PORTUGUESA, EDIÇÃO SEMIDIPLOMÁTICA, POR EVELINA VERDELHO, CENTRO DE ESTUDOS DE LINGUÍSTICA GERAL E APLICADA (CELGA) FACULDADE DE LETRAS, UNIVERSIDADE DE COIMBRA, 2007