sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A profanação dos corpos

[Aquiles] arrastava o cadáver de Heitor, que amarrara atrás do carro.
E depois que o arrastara três vezes em torno do túmulo
Do falecido filho de Menécio, de novo se deitava na tenda.
Mas deixava Heitor estendido, de cara para baixo na poeira.
Porém Apolo afastava da carne todo o aviltamento, com pena
De Heitor, até na morte. Cobriu-lhe o corpo todo com a égide
Dourada, para que Aquiles lhe não dilacerasse a carne ao arrastá-lo.
[Apolo referindo-se a Aquiles] Só que nada obterá de mais belo nem de mais proveitoso.
Que contra ele não nos encolerizemos, nobre embora seja!
Pois ele avilta na sua fúria terra que nada sente.

Ilíada, canto XXIV, tradução direta do grego e em verso feita por Frederico Lourenço.

Aquiles, filho de uma deusa e de um homem,  mata Heitor em combate, porque este tinha morto também em combate, o seu amado e viril amigo Pátrocolo. Não satisfeito, profana o corpo, arrastando-o sucessivamente pela terra. Não só Apolo, o “sol invictus”, deus da Razão, não aceita tal procedimento, como Zeus ordena que o corpo seja entregue ao pai de Heitor, para que a família faça as cerimónias fúnebres. Intervêm também a deusa Tétis, mãe de Aquiles furibundo, que sai das profundezas de uma gruta marítima, fala com o filho e com o venerando ancião, Príamo, pai de Heitor, que vai ter com Aquiles, guiado por outro deus, Hermes. Aquiles por fim acede, entrega o corpo e convida Príamo para uma refeição. Interrompe-se a guerra por doze dias!

Este é um dos episódios marcantes da Ilíada, obra-prima da cultura helénica e europeia, que reivindica ainda hoje a cultura clássica.
Aquiles é o herói sobre-humano, mas não o seria se continuasse a aviltar o corpo de quem combateu e matou, não o entregando a um velho e corajoso pai.

Será que ainda somos herdeiros desta matriz europeia?

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