terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Os tempos da História

Já lá vão uns anos (em 2003) em que apresentei este texto para discussão na escola sobre o problema, recorrentemente em discussão, da distribuição das horas da disciplina de História no 3º ciclo. Como ainda hoje, alguns dos obstáculos que impedem uma discussão séria são o corporativismo, ainda que disfarçado, o relativismo, a indiferença e o menosprezo pelas ciências sociais, alicerçado por um preconceito que se apresenta como uma necessidade de pragmatismo sob a auréola da tecnocracia e do que se presume serem os saberes fundamentais. O texto é datado mas a discussão recomeça (?).

De acordo com o n.º 3, art. 2º, do Decreto-Lei n.º 6/2001, de 18 de Janeiro, “...o projecto curricular de escola é concebido, aprovado e avaliado pelos respectivos órgãos de administração e gestão. “ Assim, e com base no desenho curricular relativamente flexível, constante do referido decreto-lei, as opções a tomar em cada escola poderão conduzir a profundos desequilíbrios quanto ao lugar das várias disciplinas, que poderão pôr em causa a consecução das finalidades fundamentais de algumas delas, tendo em vista a formação integral dos alunos[1].
Neste momento põe-se a questão da distribuição das horas lectivas na área de Ciências Humanas e Sociais. À partida, o senso comum aconselharia a uma distribuição igualitária dos tempos lectivos, fazendo tábua rasa das práticas anteriores, dos princípios que enformam a legislação, dos projectos das escolas, do perfil dos alunos do ensino básico que se pretende construir, da formação que um futuro cidadão português pode ter no espaço português, na Europa e nos países de língua oficial portuguesa com quem mantemos relações seculares e com quem nos identificamos.
Mas os professores, sobretudo, e os outros membros da comunidade escolar não podem, por definição, limitar-se ao senso comum nem a esquecer os problemas ou cair no relativismo fácil. Uma escola em que não haja, para além da informação,  a prática da reflexão, análise, debate, bem poderia fechar as portas, pois que na actualidade os conhecimentos podem adquirir-se acriticamente através de “desvairadas” maneiras e media.
O problema não se põe em termos de valorizar ou desvalorizar determinada disciplina, muito menos em defender mesquinhos interesses corporativos. Os saberes complementam-se e, embora com diferentes perspectivas, pode caminhar-se para uma verdadeira interdisciplinaridade e, no caso concreto, para a transdisciplinaridade. Mais do que a compartimentação das Ciências Sociais, interessa-nos uma perspectiva global, no fundo uma Ciência Social como um todo, com diferentes abordagens de uma mesma realidade, seja através da História, da Geografia, da Sociologia, da Antropologia Cultural, da Economia. De passagem, cito os exemplos de Orlando Ribeiro ou José Mattoso, entre outros, que souberam combinar os contributos científicos das diferentes disciplinas, sem preconceitos em relação à sua escola de origem. Não é isso também que os professores pretendem que os alunos apreendam?
Relembremos o desenho curricular anterior ao D.L. 6/2001 e a sua correspondência ao modelo proposto pelo referido Dec. Lei:

TOTAL
HISTÓRIA
3h = 1,5
3h = 1,5
3h = 1,5
9h = 4,5
GEOGRAFIA
3h = 1,5
-
4h = 2
7h = 3,5
Nesta Reorganização Curricular, a História passou de 150 minutos para 90 minutos por semana no 7º ano. No oitavo e nono ano de escolaridade estão previstas em cada ano uma aula de 90 minutos semanal, havendo uma aula de 45 minutos que pode ser distribuída pelas disciplinas de História ou Geografia em alternativa. Se, em um desses anos (o 8º ou o 9º ano), a disciplina de História ficasse apenas com uma aula de 90 minutos, perderia no conjunto do ciclo cerca de 64 aulas, enquanto a disciplina de Geografia, que ganhou a continuidade no 8º ano, continuaria com o mesmo número de aulas.
Os programas de História são os mesmos há vários anos e foram projectados para um número maior de aulas. [...].
O lugar da História, no currículo do 3º ciclo também tem uma história, diria secular e permanente, no que respeita aos tempos lectivos. Mesmo antes do 25 de Abril de 1974 esta disciplina era contemplada com 3 tempos lectivos semanais. Infelizmente (infelizmente numa perspectiva de rigor científico e de assunção de valores democráticos) a ideologia nacionalista exacerbada, o conservadorismo, a censura em relação ao mundo contemporâneo e aos movimentos sociais, políticos, estéticos, religiosos etc. estavam sempre presentes ou ... ausentes conforme os interesses. O mesmo se passava com a Literatura Portuguesa (até Camões e Eça de Queirós eram censurados), com a Geografia ao serviço do “Portugal Pluri-Continental” ou a Química onde se estudavam os ciclos do azeite e do vinho ou do sabão, espelho de uma sociedade rural, da mercearia, da terrinha e da adega,  que o regime teimava em conservar. Compreender e actuar no mundo actual era simplesmente proibido! Explícita e implicitamente remetia-se a História para a retórica do passado. Os conhecimentos, em geral, serviam mais para a aquisição de títulos que reproduziam uma sociedade imobilista e de ostensiva diferenciação social.
De 1974 até à actualidade Portugal mudou e evoluiu, integrou-se no mundo moderno e no espaço europeu. O papel da disciplina de História foi compreendido como essencial para a explicação do lugar em que vivemos, das relações que temos com a Europa e o Mundo, da complexidade e multiculturalidade, da compreensão que poderemos ter, enquanto cidadãos, da consciência nacional e da identidade em permanente construção e a memória de uma cultura sedimentada por um passado de inúmeras gerações que ajudaram a construir o presente.
Trata-se de valores: éticos, políticos, estéticos ... Ao contrário de práticas do passado, antes “legitimadas” e assumidas, agora ocultadas, por alguns, pelo senso comum ou pelo cumprir apenas das burocracias imprescindíveis, hoje pretende-se, até por imperativo legal, que os valores sejam, não doutrinados e humildemente aceites, mas assumidos critica e conscientemente e escolhidos pelos sujeitos que são os alunos. Os estudantes são confrontados com as diferentes formas como culturas e civilizações encararam e resolveram os seus problemas, as suas crise e rupturas, como viveram o seu dia a dia, como estavam mais ou menos hierarquizadas, como construíram as suas cidades, se apropriaram dos espaços e usufruíram as artes, como se relacionavam com o seu Deus ou deuses, como pensavam sobre o mundo conhecido e praticavam a ciência, como conviveram ou destruíram o outro.
Trata-se também de competências. Não basta saber, é necessário saber fazer. Prescreve-se o tratamento da informação e utilização das fontes, a compreensão histórica nas vertentes da temporalidade, espacialidade e contextualização e a utilização adequada das linguagens das diferentes áreas do saber para se expressar.
O papel da História  não se pode exercer no vazio. As competências e capacidades têm necessariamente referentes cognitivos, adquiridos pelo prazer e pelo trabalho. Como compreender, por exemplo, as relações de Portugal com o Brasil e países africanos e valorizar a diversidade cultural sem estudar a expansão portuguesa; como interpretar a arte e os textos de épocas passadas e da actualidade sem algumas luzes sobre Atenas no século V, a Idade Média, o Renascimento ou as revoluções liberais, épocas inscritas no que se entende por matriz europeia; como assumir valores sem conhecer as diferenças, como analisar o espaço da cidade em que vivemos sem conhecer as funções e os espaços da mesma cidade em épocas diferentes?
Não se trata já do enumerar de datas e factos sem sentido, da utilização abusiva da memória sem compreensão nem explicação, enfim, do discurso autoritário que mantinha a ordem social. Já se fez isso noutras épocas, já não se faz por aqui há muito. Para Duby (1997), o historiador tem o dever de não se fechar no passado  e reflectir assiduamente sobre os problemas do seu tempo, porque, como diz, «para que serve escrever a história se não para ajudar os contemporâneos a manter a confiança no futuro e a armar-se melhor para enfrentar as dificuldades que quotidianamente se deparam?» [2].
Mas também não nos interessa produzir historiadores em ponto pequeno. Nem sequer a maioria dos alunos vão seguir a disciplina de História após o 9º ano, uns porque seguem para outras áreas, outros, uma percentagem significativa, porque abandonam a escola. Sem um sólido ensino básico o que farão? Esta é a raiz do problema. O fundamental é a formação integral do cidadão e a eliminação das desigualdades que a escola pode corrigir em vez de acentuar como a nossa constituição prescreve:
ARTIGO 73.°
(Educação, cultura e ciência)
1. Todos têm direito à educação e à cultura.
2. 0 Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para o desenvolvimento da personalidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida colectiva.
3. 0 Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural, (...)
ARTIGO 74.°
(Ensino)
1. Todos têm o direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar.
2. 0 ensino deve contribuir para superação de desigualdades económicas, sociais e culturais, habilitar os cidadãos a participar democraticamente numa sociedade livre e promover a compreensão mútua, a tolerância e o espírito de solidariedade.
É também na sequência deste articulado da nossa Lei Fundamental que a nossa escola, a Escola Secundária de Severim de Faria consignou, entre outros, no seu projecto educativo, os seguintes princípios:
3) Garantir o primado da dimensão pedagógica em toda a sua actividade assumindo-se inequivocamente como agente educativo privilegiado.
5) Relevar o domínio da Língua e Cultura Portuguesas, como factor determinante do processo de identificação e afirmação dos valores nacionais.
7) Compreender a solidariedade e o respeito pela diversidade cultural como vertentes fundamentais da formação do cidadão numa perspectiva universalista e integradora.
Como se disse atrás, não se desenvolvem capacidades no vazio, não se aprende a aprender, a fazer e a saber fazer sem tempo. Cumprir programas sem tempo suficiente é receitar apenas aulas expositivas, cumprir conteúdos sem objectivos, é dar o primado a actos administrativos em detrimento da dimensão pedagógica.
Junho de 2003
João Simas


[1] PARECER DA DIRECÇÃO DA APH SOBRE PROPOSTA DE REORGANIZAÇÃO CURRICULAR DO ENSINO BÁSICO, Direcção da Associação de Professores de História, Lisboa, 2 de Maio 2000
[2] PARECER DA DIRECÇÃO DA APH SOBRE PROPOSTA DE REORGANIZAÇÃO CURRICULAR DO ENSINO BÁSICO, Direcção da Associação de Professores de História, Lisboa, 2 de Maio 2000

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