sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Lápide comemorativa das "Alterações de Évora" de 1637. Igreja de S. Antão, Praça do Giraldo, Évora.

Segue-se um texto de Manuel de Severim de Faria sobre os acontecimentos. Repare-se no movimento que ele consegue transmitir sobre a actuação dos "pícaros" e outros que levaram a uma sublevação que esteve na origem da Restauração da Independência de Portugal em 1640.
A revolta era contra os impostos e contra a prepotência. Tudo começou na Praça Grande (a Praça do Giraldo).

AS ALTERAÇÕES DE ÉVORA (1637)

Passou-se ordem para que pusessem em inventário todas as fazendas do Reino, e, sem, se declarar os intentos, se começou a executar meados de Agosto na Cidade de Lisboa pelos Corregedores do Crime da Corte, e nos mais lugares pelos Corregedores das Comarcas.
Surpreendeu e atemorizou S. Majestade de servir dos quintos das fazendas, contadas pelo que valiam. [...] Que se pusesse aos pescadores de Lisboa tributo e embargo que não passassem pela Torre de Belém para baixo sem passaporte da mesma Torre, deixando por ele certa quantia [...].
Sentiram os Pescadores grandemente [...] desistiram uniformemente de pescar [...]
As novas dos motins dos Pescadores chegaram à Cidade de Évora muito acrescentadas, e creram muitos que fora movimento formado do Povo contra a nova diligência de inventariar as fazendas, e como se começavam em Évora [...] os mesteres este ano do povo, [...] foram a casa do Corregedor [...] pedir-lhe parasse na execução [...]. Não lhe deferiu o Corregedor pelas muito apertadas ordens que tinha de S. A. [...]

Choveram no mesmo instante pedras nas janelas e casas do Corregedor, despedidas dos rapazes e pícaros da Praça, os quais, animados com a assistência do Povo, subiram acima e botaram na Praça, furiosa e confusamente, quanto acharam nas mesmas casas do Corregedor e, fazendo uma fogueira defronte delas, se pôs fogo a tudo.
Escondeu-se o Corregedor em uns entre-solhos. E, sendo pouco depois achado pelos rapazes, passou aos telhados por uma fresta [...] se recolheu desairoso às casas do Cónego [...], que estão paredes meias com as suas. [...]
Continuou a fúria do Povo amotinadamente pela Cidade e entrando em casa de Luís de Vila Lobos, logo na de Manuel de Macedo e de Agostinho de Moura, actuais vereadores, que já esta­vam escondidos, lançaram tudo o que havia nestas casas pelas janelas à rua, e grande parte se trouxe à fogueira que na Praça ardia. E ainda que estes vereadores não haviam entrado na nova diligência de inventariar as fazendas, tinham o ano passado dado consentimento a um novo tri­buto de um real por cada canada de vinho, e outro por cada arrátel de carne, que se vendessem pelo miúdo na Cidade, e porque logo então o Povo replicou, e não consentiu nestes novos reais, a que chamavam de água, executou agora nas casas dos ditos vereadores o ódio que desde aquele tempo havia concebido contra eles. E, querendo declarar mais como não consentira nunca aquele tributo do real de água, foi o mesmo Povo ao açougue e fez em rachas as balan­ças, porque as carnes se arrolavam para este tributo; e correndo às casas dos escrivães, trouxe a queimar na fogueira da Praça todos os livros e papéis que entendeu tocavam ao inventário das fazendas, ao tributo do real de água e também à quarta parte do Cabeção Geral, que o ano passado se havia imposto e em que o Povo do mesmo modo não consentia.
Notou-se que em todos estes acontecimentos não houve ânimo nenhum de se furtar cousa alguma; tudo o que se achou nestas casas ou veio à fogueira da Praça ou saiu em pedaços pelas janelas, e tanto assim que até umas panelas de doces, que estavam em casa do Corregedor, vie­ram à mesma fogueira, sem haver quem lhes tocasse para outro efeito.
Foi este dia de grandíssima confusão nesta Cidade, e quase do mesmo modo os três ou qua­tro que se lhe seguiram, porque esta parte vil do Povo, que foi só que se moveu, amotinada em vários troços, andava furiosa de dia e de noite, corria e apedrejava as casas daqueles que nas ocasiões dos tributos se haviam mostrado menos zelosos do bem comum, e, como as justiças não apareciam e os nobres recearam que, se resistissem a este ímpeto, o poderiam acrescentar, acu­mulando-se de novo nos pícaros e maganos, a outra parte melhor do Povo, que não estava declarada, era tudo horror tudo confusão: o Povo se apelidava o Povo se ouvia e, sem ordem nem concerto, o Povo dispunha e executava. [.1
Seguiu quase todo o Alentejo e o Reino do Algarve, e ainda alguns lugares da Beira, o exem­plo de Évora, e sucessivamente se foram levantando com os tributos do real de água e quarta parte do cabeção; e dos lugares maiores só Elvas, Moura e Estremoz ficaram quietos, e os demais foram os movimentos da mesma qualidade que em Evora, mais ou menos segundo a oca­sião do ímpeto, prudência das justiças e resistências dos nobres, que em toda a parte se opuse­ram a estes motins. Lugares houve em que vieram a fogueiras públicas os cartórios civis e cri­mes dos escrivães, em que não havia nada que pertencesse nem a tributos nem a inventários das fazendas.

Manuel Severim de Faria,«Relação do que sucedeu em Portugal, e nas mais províncias do Ocidente desde 1637 até Março de l638», in Alterações de Évora, int. e notas de Joel Serrão, Portugália, Lisboa, 1967, pp. 137-142.

Um comentário:

bento disse...

Pois que talvez a história se repita
bento