domingo, 20 de abril de 2008

Acordo ortográfico 2. E o cagalume desusado!

Os livros têm história. E cada volume pode ter uma história, particular, familiar.
Sempre me fascinou um livro que tenho em casa. O título é “Prosas Portuguesas” do Padre D. Rafael Bluteau, datado de 1729. É a última data do livro, de um papel de excelente qualidade comparado com os actuais, embora um pouco bichado. São as várias licenças da Inquisição e do Ordinário, a multiplicidade de temas académicos ou não, do tempo de D. Pedro II e D. João V, muitas novidades para a época discutidas em academias como a promovida pelo Conde da Ericeira.
Este livro foi oferecido à minha mãe por uma madrinha, também prima. A madrinha era filha do visconde de Lagoa mas o pai nunca tinha casado com a mãe, uma camponesa filha de um hortelão, prima direita da minha avó em Silves. Um romance de século XIX! A madrinha foi criada no campo, e apesar de “mulher de armas” nunca ligou às literaturas. Por isso, perante o espanto da minha mãe em relação à biblioteca ela disse-lhe: leva um livro se quiseres. E foi este!
D. Rafael Bluteau era um frade teatino, de origem francesa, cultíssimo e pré-iluminista.
Discute ortografia e certas palavras mais ou menos correctas na época (respeito a ortografia, embora o s impresso seja mais parecido com um f):

Vocabulos portuguezes, cujo genuino significado ficou assentado em varias conferencias.
Na segunda Conferencia do dito anno de 1696. Aos 19 de Fevereiro se assentaraõ as palavras seguintes.
(…)
Na terceira Conferencia em 26. De Fevereiro.
VII. Ao insecto luzente, a que os Latinos chamaõ Cicindela, e Noctiluca; os Gregos Lamparis, e Pirilampis; os italianos Lûciola, os Francezes Ver luisant; e os Castelhanos Luciernega, chamaõ os Portugueses Cagalume; he nome que naõ póde usarse em papeis serios, e deve dar-selhe outro (…) Assentouse dar o nome ao insecto; propozse Pirilampo; achouse affectado; Fuzillete; e Vago lume se naõ admittiraõ; só pareceraõ bem os de Nouteluz; e Bicho luzente, e determinaraõ, que ambos podiaõ usarse.

"Oratorio Requerimento de Palavras Portuguezas, Aggravadas, Desconfiadas, Pertendentes, Presentado no Tribunal das Letras (...)", pág. 17, in D. Raphael Bluteau, Prosas Portuguezas, 1729


Ora os portugueses esqueceram o Cagalume (há quem use) mas também não tiveram paciência para usar o nouteluz nem o bicho luzente. Ficaram com o erudito pirilampo, mais de acordo com “os papéis sérios” mas "afectado" na opinião dos académicos.


Mas o interessante para a discussão actual é que nesta época não se usavam os acentos nas esdrúxulas, o plural da terceira pessoa não terminava em m mas em aõ, por exemplo (mais ou menos com se pronuncia), havia consoantes duplas, o ph com valor de f, as regras do hífen eram diferentes, tal como as maiúsculas e minúsculas...
E isto não significa que este português fosse arcaico, antes pelo contrário, se compararmos com outras línguas. Nesta época, por exemplo, ainda o castelhano usava o ç, substituído pelo z.

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