Era pequeno, teria ainda uns dez ou onze anos, quando ouvi falar de eleições para as câmaras e isso despertou-me a curiosidade. Calhou em conversa, não sei porquê, o meu pai falou-me, numa voz um pouco baixa, que em França, que eu só conhecia do mapa e das minhas viagens imaginárias, havia eleições para as câmaras municipais e debates públicos entre candidatos. Não sei se utilizou a palavra debate, que não era muito usual nem permitida, ou discussão, palavra também pouco querida ao regime.
Na casa do meu tio Jica, logo à entrada da casa, onde ele fazia os seus trabalhos de alfaiate, à noite havia sempre uma pequena tertúlia, o meu pai, uns funcionários das finanças e outros amigos. Aí também ouvi intrigado falar de que antigamente havia eleições. A luz era fraca, normal para a época, talvez menos que o suficiente para o meu tio passar a ferro ou marcar calças e casacos com giz, mas chegava ou até facilitava as conversas calmas que aqui se faziam, seguidas de silêncios pensativos, dentro de certas normas, que o meu tio-avô era considerado um homem sério e gostava de respeito e que cada um falasse e fosse ouvido no tempo próprio. Mas tinha sentido de humor, sem gargalhadas, e era um grande contador de histórias reais e respeitava-me tal como aos adultos, embora não desse largas à confiança. Não me atrevia a mexer em qualquer peça das que ele utilizava para os fatos, embora me apetecesse mexer naquelas grandes e variadas tesouras.
O meu tio Jica, chamava-lhe a família assim por ser o mais novo de uma geração, era para os outros o senhor João Simas e para a minha avó o mano João. Aprendeu a profissão com o meu avô, irmão mais velho. Era tio e padrinho do meu pai, também João, o meu pai foi padrinho de casamento de uma filha, que teve também uma filha Maria João, eu também herdei o mesmo nome, tal como o meu filho mais velho e um sobrinho meu, e mais tarde vim a comprovar que em várias gerações anteriores havia sempre um João.
Nessas histórias ouvidas ouvi falar da República onde havia eleições e greves, de que ele não gostava, pela balbúrdia e desordem, palavra que me espantou também, porque me parecia até aqui uma impossibilidade. Mas a conversa não foi muito além, porque eram assuntos proibidos. Mal sabia eu que, mesmo em Sousel, onde isto se passava, poucos anos antes tinha também havido greves clandestinas, de trabalhadores a lutar pelas oito horas de trabalho e pelo fim do trabalho de Sol a Sol, levando pancadaria e prisões por “actos de subversão” e conspirações “comunistas”.
E essas coisas faziam-me também pensar porque é que o presidente da câmara era o senhor B, nomeado pelo governador civil, que era da mesma terra, um presidente que quase nem sabia falar nem mostrava grandes dotes de inteligência nem capacidade de trabalho sequer para ele. Também para que serviam aquelas câmaras? A sede de concelho já tinha água, mas não em todas as casas e no Verão faltava todos os dias, de tal modo que a minha mãe ainda apanhou febre tifóide causada por essas águas pouco desinfectadas. As outras freguesias nem isso tinham, a maior parte das ruas eram em terra, a electricidade ainda não era um bem comum, a câmara tinha meia dúzia de funcionários …? E esgotos? Havia nalgumas ruas na sede de concelho, noutras havia umas valas, abertas a picareta, à espera que viessem melhores dias ou subsídios para enterrar as manilhas. Claro que os esgotos iam mais ou menos a céu aberto parar ao ribeiro mais próximo, que a palavra ambiente não era muito usada e quase ninguém tinha ouvido falar de Ecologia. As poucas ruas que tinham calçadas já as tinham há muito, havia uma avenida por onde passava a estrada principal com uma calçada de paralelepípedos, provavelmente fruto daquelas obras de quando o desemprego era insuportável e as câmaras arranjavam estes trabalhos com salários ainda mais baixos, mas apenas para aqueles que se portavam bem e agradeciam de chapéu na mão. Nas outras, era pó no Verão, que alguns vizinhos regavam com alguma água das limpezas, e lama no Inverno, misturada com as bostas das mulas e machos, a força motriz das carroças e das charruas e as caganitas dos rebanhos de centenas de ovelhas que atravessavam a vila, conduzidas por pastores com imensos cajados, pelico e safões. Como as pedras andavam à solta, sempre serviam para facilmente grupos de rapazes andarem à pedrada entre eles ou atirarem aos gatos e pássaros e algumas mais afeiçoadas até poderiam ter a mesma função que o jornal que era o papel higiénico da época (algumas descrições que amin Malouf faz das aldeias do Líbano, não andam muito longe destas). Nesse tempo não havia gatos mansos na rua, tanto fugiam dos rapazes como dos inúmeros cães vadios ou de donos intermitentes, aqueles caçadores que só se interessavam por eles durante a época.
Para além disso, todos tinham medo do senhor C, que vivia num palacete barroco, grande proprietário, homem extremoso na defesa do regime. Vim a saber mais tarde outras coisas sobre dezenas de votos que ele pôs nas urnas a favor de Américo Tomás que oficialmente venceu Humberto Delgado, quando se sabia em surdina que era o contrário. Mas ainda me lembro de ver os trabalhadores ao sábado à noite, à espera de receberem a jorna, enquanto esperavam que ele jantasse e, depois destas desoras e desespero, receberem a notícia do alto da varanda, que viessem no dia seguinte, que já era tarde. E, em silêncio e de chapéu na mão lá iam, que ele tinha muitos poderes e muitos conhecimentos. A ninguém, com famílias, agradaria um futuro de maltês, sem emprego sequer precário nem aqui nem na maior parte do Alentejo, onde ele e outros tinham parentes e amigos.
E havia terras bem piores!
São ainda recordações destas que me fazem levar a votar e a participar, nem que seja com actos mínimos, na construção de um melhor presente, onde todos tenham um lugar como cidadão.
2 comentários:
Sou há muito leitor do seu blog mas só agora aqui vou comentar: um testemunho bastante lúcido, de quem conheceu e conviveu, de forma directa ou por interposta pessoa, com estas realidades e quem, sem margem para dúvida pode dar valor a pequenos nadas como, por exemplo, este comentário porque estamos em liberdade, com problemas e lacunas supríveis no nosso país, é certo, mas o medo bárbaro não existe. Esperemos que assim continue!
Que belo texto e que tempos tão interessantes esses que relatas; interessantes do ponto de vista histórico, da memória que é crucial preservar.
Deixo-te uma sugestão: pensa, seriamente, em publicar um conjunto destas memórias, por este blog dispersas, em livro. Certamente muitos portugueses gostariam de ler as tuas memórias destes tempos. Eu gostaria.
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