A primeira vez que vi José Saramago foi no Anfiteatro 1 da Faculdade de Letras de Lisboa, pouco tempo depois do 25 de Novembro de 1975, talvez em Dezembro ou já Janeiro de 1976. Eram vários jornalistas e escritores, que também escreviam para os jornais. Tinham sido despedidos em massa no próprio dia 25 de Novembro, sem direito a qualquer indemnização nem explicação. Se alguns, como Urbano Tavares Rodrigues, tinham outra profissão, no caso professor na Faculdade de Letras, outros como Saramago, estavam quase na miséria, mas a renascer das cinzas. O Diário de Notícias voltou a ser o que era, um órgão do regime, O Século acabaria pouco tempo depois.
Nesse tempo, havia na Faculdade, inúmeras conferências e colóquios, organizados por estudantes e professores. “Anti-académicos, como José Gomes Ferreira, ou mais frequentadores de outras tertúlias, como Manuel da Fonseca, contavam histórias de encantar, um com o seu irreal quotidiano, outro com o seu quotidiano mais concreto, do heróico ao picaresco, relatando com humor coisas do Alentejo, Lisboa e outras desvairadas partes. Nestas sessões e noutras, onde se discutia o futuro e os projectos da Faculdade e a sua intervenção no país, iam também professores e escritores, como os seus cachimbos, como Manuel Ferreira e David Mourão-Ferreira. Investigadores como Jacinto do Prado Coelho e, sobretudo, Lindley Cintra, cuja intervenção cívica, antes e depois do 25 de Abril, seja pela literatura, pela sua postura face ao autoritarismo anterior ou pela alfabetização, não é de somenos recordar. António José Saraiva passeava-se por onde lhe apetecia, parando quando e onde calhava, porque tinha uma nova ideia ou revisto as ideias dos dias anteriores. Nas aulas, a que assisti, faltando a outras, visto que não era seu aluno, falava de temas do início ou do fim do programa ou até fora dele, mais frequentemente e desligava o aparelho auditivo quando não estava para aturar cópias de trabalhos pouco interessantes. Depois recebíamos ainda outras e outras visitas, cantores, músicos, nacionais, estrangeiros, espanhóis ainda em tempo de ditadura e até Álvaro Cunhal lá foi falar de arte e literatura, perante uma plateia onde havia tantos de extrema-esquerda, que o respeitaram, coisa menos habitual. Refiro-me apenas a acontecimentos relacionados com a Literatura, pois noutras áreas ia sucedendo o mesmo.
Nesse ano, organizou-se um grupo de jovens, o Movimento Alfa que, no Verão, partiu (éramos centenas) para a alfabetização no interior do país, sobretudo no Alentejo.
Experiências marcantes, que levaram muitos a apreciarem pequenas grandes coisas desta vida!
A impressão que tive de Saramago, na época ainda pouco conhecido, é que era um homem de convicções, que não desistia de lutar, com método. Mais tarde vi-o, já célebre e polémico ou polemizado, naquele confronto antigo entre os “castiços” que sabem tudo e desprezam os outros com a mesma intensidade e os outros, apelidados de “estrangeirados”, mas que apenas querem agitar um pouco as águas, com algumas “pedradas no charco”.
Parecia um pouco duro na expressão do rosto, mas era a dureza da vida de quem não nasceu em berço de ouro nem de família. Afinal, era um homem simples, afável sem salamaleques “académicos”, sem dívidas para com as elites, que falava, escrevia e intervinha, perseguindo uma Utopia, mas com os pés na terra, mesmo na terra vulcânica, mesmo com saudades das terras do Ribatejo, Alentejo, Lisboa e outras gentes, a que regressava sempre que necessário.
E que continue a regressar, com a sua obra e o seu exemplo!
Morreu Saramago; Viva Saramago!
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