domingo, 13 de junho de 2010

Camões, dia de Portugal e o Ultramar.


   Este já chegou a ser o dia da Raça, coisa mal explicada, porque o Estado Novo sempre falava numa Pátria pluricontinental, onde caberiam todos os que fossem patriotas à maneira oficial, apesar do Estatuto Colonial que definia claramente que havia portugueses (e alguns de segunda), assimilados e indígenas, estes considerados como uma espécie de crianças que haveriam de ser evangelizados, mas que serviam claramente para trabalhar. Eram anti-patriotas e, portanto, não portugueses, os que se opunham. Era assim a lei e mais ainda a prática consolidada de décadas, em que já era difícil acreditar que Portugal pudesse ter algumas coisas que os outros já tinham há muito . Já a escravatura tinha acabado a contragosto no século XIX, mas continuavam nas colónias os “contratados”, isto é aqueles que eram apanhados sem um cartão de trabalho e se viam obrigados a trabalhar por um salário qualquer nas roças. Os que iam trabalhar para os cafezais do Norte de Angola ou para S. Tomé, geralmente ficavam a dever dinheiro ao patrão que tinha um empregado ou sócio na cantina que lhes vendia comida ou vinho à colher pelo preço que lhe convinha, e tinham que prolongar o contrato, além de levar umas pauladas.
Quando oiço falar de Ultramar lembro-me também de uma senhora que fazia limpezas e era analfabeta, como tantos neste Alentejo e em todo o país, mais ainda em Timor que no Minho e que tinha um filho em Angola na tropa, coisa generalizada que demorava aí uns quatro anos. Dizia ela ao ouvir um fado na telefonia, talvez do António Mourão, num programa chamado Música no Trabalho: “Ai senhora, até a música no “Tramar” é triste!
   Neste país “vivia-se como habitualmente”. Nos anos sessenta e até mais tarde, nas tardes de Junho, nas vilas do Alentejo, não se ouvia nem se via quase nada, a não ser uma ou outra carroça puxada por mulas, a chiar, passando pelas covas das calçadas ou dos terreiros, que raras eram as alcatroadas ou calçadas, em algumas corriam ainda esgotos, via-se um ou outro rapaz, às vezes em grupos, daqueles que não estavam a trabalhar, porque a maior parte da população estava no campo, onde já havia máquinas, mas muitos ainda ceifavam com foice, outros estariam nas eiras, separando o trigo e levantando a palha e a poeira e limpando o suor com o lenço. Os divertimentos dos rapazes eram os da imaginação: jogar ao pião, aos cowboys, andar à pedrada aos gatos ou aos ninhos, fumar uns mata-ratos às escondidas … Os mancebos (assim apareciam nos editais), com 20 anos iam para a tropa, alguns voluntários até mais cedo, para Angola, Moçambique, Guiné, os mais sortudos para Cabo Verde ou S. Tomé ou ainda para Timor, onde a população ainda gostava dos portugueses porque os deixavam viver como no século XVI, ao contrário dos japoneses que lá estiveram na 2ª guerra mundial, que matavam qualquer um só por pisar a sombra deles.
   O dez de Junho era também feriado. Alguns homens iam a cafés ou tabernas, onde, em poucos, se ouviam os discursos patrióticos no único canal de televisão, em que se impunham medalhas a mortos, recebidos pelas viúvas dos militares. Bebia-se vinho de pouca qualidade ou “a martelo”, de marcas como Camilo Alves, até porque o proteccionismo estatal não deixava cultivar vinhas na maior parte do Alentejo (Borba, Vidigueira, Redondo … eram excepções).
O entusiasmo pelos discursos era pequeno, a não ser um ou outro que pensava subir na vida, tecendo elogios a pequenos senhores. Também havia alguns convencidos mas o entusiasmo de “Angola é Nossa já estava fora de moda. A reacção também não era muita, até porque o vizinho do lado poderia ser informador da PIDE. Silêncio e copos, ou conversas mais entusiasmadas sobre o futebol ouvido nos relatos da rádio ou então sobre os feitos dos forcados e cavaleiros nas touradas.
   Do calor e das moscas varejeiras, que Fialho tão bem descreveu, dos salários e trabalhos medievais, da ordem e da vida controlada, do espírito ao corpo, aos passos e espaços, o controlo social, do regime, dos senhores, dos padres, dos moralistas, das vizinhas e vizinhos, muitos já tinham fugido em desespero. Alguns para França, como na maior parte do país, mas estes, por aqui, mais para a Margem Sul de Lisboa: Barreiro, Fogueteiro, Samouco …, que dinheiro para ir mais longe não havia e, se o houvesse, ainda era preciso ir a salto, porque ter um passaporte era coisa para muito poucos, que o regime não gostava de grandes andanças.
   Era um pouco assim este país onde alguns se orgulhavam do Ultramar, onde gerações de jovens (mais de 800000) perderam alguma inocência, pernas, braços e até a vida, outros que ainda hoje sonham obsessivamente com o que lá se passou, outros (e não foram poucos) que por motivos políticos ou em desespero tomaram os caminhos de França e do resto do mundo. Um país, onde a segunda cidade mais habitada por portugueses eram os “bidonvilles” de Paris, um país que perdeu mais de um milhão de pessoas que emigraram, um país onde nos manuais escolares se falava das grandes obras do Estado Novo, como a única auto-estrada de Lisboa a Vila Franca, mas em que na maior parte das aldeias ainda não havia electricidade, esgotos e água canalizada, habitado por camponeses em fuga. 
Quase por ironia, festejava-se o dia em que Camões morreu, mas não se dava o direito  de o ler à maioria, num país de 40% de analfabetos ainda no início dos anos 70.

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