domingo, 8 de maio de 2016

Os tempos livres e os projetos das escolas

Nesta discussão deslocada (digo deslocada porque o que está em questão é o financiamento de privados com dinheiros públicos ao mesmo tempo que o estado desperdiça e não financia recursos pagos por todos) usa-se por vezes o argumento de que os pais trabalham e nas escolas públicas não há atividades para além das aulas, enquanto os progenitores estão ocupados.
Só em parte é verdade. Muitas escolas públicas também o fazem, e fazem mais que alguns privados que praticam a censura (nem todos e há que distinguir cooperativas a sério de empresas lucrativas), mas não fazem mais porque não as deixam fazer, isto é, porque o estado desvia verbas para os privados e para outros destinos e porque continua a centralizar tudo.
Se o Estado prescindir da prisão e teia burocrática, mesmo com menos recursos financeiros, as escolas, com autonomia a sério, com projetos próprios, diferenciados, poderão fazer muito mais, sem estarem sujeitas à inculcação de ideologias religiosas conservadoras (não confundir com religiões) ou reprodução e incremento de práticas sociais discriminatórias, inconcebíveis num estado onde todos têm direitos.

O presidente Sousa e o Acordo Ortográfico.

A visita do presidente da República a Moçambique correu bem, até foi alegre e meteu dança. Nada de mal ou até tudo bem, até para esquecer a má disposição crónica do anterior presidente sectário. Mas o presidente Sousa confundiu algumas posições pessoais e o hábito de comentar tudo com a função de presidente que representa a República Portuguesa e os seus compromissos a propósito do Acordo Ortográfico. Apelou até, numa linguagem dúbia, para que Moçambique e Angola não ratificassem o Acordo Ortográfico, que já aprovaram há longos anos, mas ainda não ratificaram.
Os problemas destes países têm sido, antes de mais os custos e as prioridades, e não qualquer posição purista ou de natureza linguística. Os problemas que têm, desde as guerras passadas e ameaças de recrudescimento, às questões de desenvolvimento, desigualdade, instabilidade, corrupção … são preocupações muito mais importantes do que a normalização de uma escrita de uma língua que muitos ainda não podem usufruir. Sim, e uma das prioridades seria o combate ao analfabetismo e o uso da língua, como fatores de unificação nacional e pressuposto para o desenvolvimento. E também é isso que eles dizem.
Parece estranho mandar recados em discursos oficiais, para cá, em países que são independentes. Suponho que não foi essa a intenção mas não se pode cair no risco de confundir um estado que tem uma dinâmica própria, e é independente, com as emoções de quem lá foi de férias quando era jovem e o pai administrava a colónia. Mas mais ainda, não se pode cair também na tentação de, através do “porreirismo” paternalista, abdicar da posição da chefia e representação do estado português, que fez, como outros em pé de igualdade, acordos internacionais e simular que se mete uma cunha a outro estado para ajudar a polémica em Portugal e tentar reverter o que foi acordado com diferentes estados, sem que alguém lhe tivesse dado mandato para isso.
Continua-se a discutir o Acordo Ortográfico de uma língua que é comum a vários estados e que não é propriedade exclusiva de nenhum, mas património comum. Continua-se deliberadamente a confundir fala com escrita, como se por magia, todas as centenas formas de falar o português se unificassem ou se pervertessem por um acordo.
Mas a discussão já começou há muito tempo, e é pena que muitos só tivesse começado a discutir dezenas de anos depois do acordado e ratificado por vários países. Recordem-se algumas datas para além de outras:
1990 - Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa assinado a 16 de dezembro;
1996 - Ratificação do Acordo Ortográfico de 1990 por Portugal, Brasil e Cabo Verde 
2004 - Celebração do Segundo Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que autoriza a adesão de Timor-Leste e prevê que basta a ratificação por apenas três países para que o Acordo Ortográfico de 1990 entre em vigor
2006 - Ratificação do documento oficial por Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe
2009 - Entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990 a 13 de maio
2010 - Guiné-Bissau ratifica o Acordo Ortográfico, faltando apenas a ratificação de Angola e Moçambique
 2011 - Novo Acordo Ortográfico é introduzido no sistema educativo português no ano letivo de 2011-2012
2012 - Desde o dia 1 janeiro, órgãos, serviços, organismos e entidades governamentais, bem como as publicações oficiais, passam a ter a sua grafia adaptada
Estamos em 2016!

Quem quer reverter tudo, mesmo sem falar e acordar com os que representam outras centenas de milhões que usam a língua portuguesa que também é deles? Querem que todos os que usaram, por obrigação também, voltem a usar a grafia dos anos quarenta (ou a anterior a 1911)? Querem que as crianças e adolescentes “voltem” a escrever de uma forma que nunca usaram?

domingo, 1 de maio de 2016

Moção sobre o 25 de Abril e 1º de Maio aprovada na Assembleia Municipal de Évora

Foi aprovada por unanimidade,na Assembleia Municipal de Évora, a 29 de Abril, esta moção que propus em nome  da CDU, sobre o 25 de Abril e 1º de Maio:


Moção sobre o 25 de Abril e 1º de Maio

“A Revolução do 25 de Abril restituiu aos Portugueses os direitos e liberdades fundamentais (Prólogo da Constituição de 1976)”. O Movimento das Forças Armadas, liderado pelos capitães, com o apoio e participação coletiva do povo português permitiu que se começassem a cumprir as palavras proferidas por Almeida Garrett na revolução de 1820:
Já temos uma Pátria, que nos havia roubado o despotismo: a timidez [,] a covardia, e a ignorância, que o tinham criado, que me prostravam com vil idolatria ante as obras das suas mãos, acabaram. A última hora da tirania soou; o fanatismo, que ocupava a face da terra, desapareceu; o sol da liberdade brilhou no nosso horizonte, e as derradeiras trevas do despotismo foram, dissipadas por seus raios, sepultar-se no inferno.
O movimento revolucionário de 25 de Abril de 1974, tomou nas mãos a regeneração de Portugal de forma corajosa mas pacífica, deu a voz aos portugueses, desmantelando uma ditadura de longos 48 anos que comprometia o futuro de um país, que enviava em massa os jovens para guerras coloniais que oprimiam também o desejo de liberdade de outros povos, que expulsava da sua terra os camponeses, pela emigração, umas vezes legal, tantas vezes clandestina, proibia as liberdades, denegava os direitos, prendia e torturava os que erguiam a cabeça, impunha uma censura férrea, antidemocrática, moralista e ultramontana, oprimia e rebaixava as mulheres, usava a economia arcaica ao serviço de elites monopolistas que mal deixavam sobreviver os que trabalhavam com salários miseráveis, mantinha uma parte substancial da população no analfabetismo e na injustiça social, negava o acesso à cultura e modernidade num clima de suspeição e medo, num estado centralista e totalitário.
Foi também o 25 de Abril um acontecimento internacional que acordou as esperanças de muita gente pelo mundo fora, que permitiu a independência das ex-colónias, que iniciou a “terceira vaga” da democracia que haveria de transformar tantas nações.
Foi possível romper com o fatalismo, mesmo num conjuntura económica difícil e, apesar das pressões externas, manter a soberania nacional e melhorar as condições de vida do povo português.

“O dia inicial inteiro e limpo/ onde emergimos da noite e do silêncio” (Sofia Andresen), “as portas que abril abriu”(Ary dos Santos), tornaram possível também a transformação do aparelho de estado, a dignificação do estado de direito, eleições livres, não apenas para a eleição de deputados nacionais e presidente da República, mas também para as autarquias locais, a elaboração de uma Constituição que este ano fez 40 anos, onde estão consagrados os direitos cívicos e políticos democráticos mas também os direitos sociais e culturais, “tendo em vista a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno” (Prólogo da Constituição).
Tudo isto foi possível também, pela longa resistência e persistência de muitos portugueses e portuguesas, “mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão” (Manuel Alegre), lutas que atingiam uma das maiores expressões no dia 1º de Maio, proibido pela ditadura, dia também de intervenções repressivas, mas em que, apesar das prisões políticas, havia sempre quem cantasse: “vá camarada mais um passo/ já uma estrela se levanta/ cada fio de vontade são dois braços/ e cada braço uma alavanca” (Hino de Caxias).
Tal como escrevia com entusiasmo Almeida Garrett, tornou-se possível a liberdade, e continuará, se lutarmos por essas conquistas:
Escravos ontem, hoje livres; ontem autómatos da tirania, hoje homens; ontem miseráveis colonos, hoje cidadãos; qual seria o vil (não digo bem), qual seria o infeliz que não louve, que não bendiga o braço heróico que nos quebrou os ferros, os lábios denodados que ousaram primeiro entoar o doce nome Liberdade?
Assim, a Assembleia Municipal de Évora, em 29-04-2016, reunida no Salão Nobre dos Paços do Concelho, uma das casas da democracia:
- Saúda todos os que participaram na construção do regime democrático no espírito da revolução de 25 de Abril;

- Apela à participação dos cidadãos nas lutas pela justiça social e direitos inalienáveis dos trabalhadores, no dia 1º de Maio.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Um (meu) 25 de Abril


Invocação
O que me faz escrever este texto, não são as musas, que adormeceram há muito nas obras clássicas, mas sempre renovadas, mas o povo de cidadãos que vi novamente na manifestação do 25 de Abril este ano, em Lisboa, com sentimentos de alegria, vontade de participar, um espírito unitário, jorros de futuros contra a desesperança e o medo dos anos tristes de há pouco.

Um 25 de Abril entre outros, mas também de vontade de mudar contra os medos antigos e interiorizados.

Tinha 16 anos, quase 17, e estava no então oficialmente chamado Liceu Nacional de Évora, no sétimo ano de Letras. O meu pai tinha recentemente mudado para Arraiolos, perto de Évora, para que eu e a minha irmã tivéssemos mais facilmente acesso aos estudos. Também a minha mãe recomeçou a estudar, nada fácil na época, mas sempre com apoio do meu pai.
No ano letivo anterior estava na antiga Secção Liceal do Liceu de Évora em Estremoz. Morava em Sousel e ia e vinha de camioneta ou à boleia, às vezes de comboio numa linha que passava pela serra, cheira de medronheiros e mato variado. Aprendi muito nesse ano, apesar de tudo Estremoz era um meio um pouco mais aberto, cheio de contradições também. Porque Sousel era uma terra pacata, onde parece que não acontecia nada, dominada por senhoritos, pela coscuvilhice de janelas onde não se vê ninguém, mas em que as notícias sobre a forma de estar de cada um se espalham depressa, com marcas permanentes para as mulheres, as jovens que não podiam sair de casa, os rapazes repreendidos por qualquer um, por usarem cabelos um pouco compridos ou ouvirem certas músicas, um padre detentor da moral oficial, a separação dos géneros, as classes e até as castas que ainda existiam, o espaço público privatizado por uma sociedade hierarquizada. O que valia era que os rapazes ainda podiam andar pelos campos e ribeiras, com algumas censuras toleradas, mas alguma liberdade de movimentos.
E, em Évora, já atento às novidades, que ainda se diziam baixinho, com receio de algum pide, informador (havia tantos, voluntários ou à espera de subir na vida com migalhas) fui começando a ler “A República”, o “Diário de Lisboa” e a “Seara Nova” (confesso que uma vez li um artigo de Sottomayor Cardia sobre o Estado que li e reli sem perceber nada e que só anos mais tarde compreendi qualquer coisa).
Vi também em Évora colegas, raparigas, com quem se podia falar melhor, já sem aquelas atitudes desconfiadas, retraídas, até agressivas numa linguagem codificada, aparentemente distanciada, algumas simplesmente porque não conheciam a família daquele que agora aparecia também timidamente, outras porque não sabiam estar na ausência de controle. Vestiam bata branca obrigatória, eram preparadas quer quisessem ou não para um futuro determinado pelos pais guardiões e mais ainda as mães que já tinham sofrido outras prepotências, as tias, as vizinhas, os padres, até as criadas de algumas. Mas havia quem fosse diferente e outras apareceram diferentes tempos depois.
Não sei bem como, mas consegui convencer os meus pais a ficar numa casa em Évora, onde estavam outros rapazes, também estudantes. E, nessa época, havia estudantes, poucos ainda, comparado com os tempos atuais, que vinham de variadas partes do Alentejo, Arraiolos (eu), Montemor-o-Novo, Portel, Alvito, Amareleja, Avis …. Nessa casa entrávamos pela Rua dos Touros, as meninas pela Rua do Raimundo (a mesma casa), almoços e jantares à parte, casa de banho em comum, a horas militarmente diferenciadas. Dos que lá estávamos, eu e outro amigo, ainda tínhamos alguma liberdade de sair um pouco, os outros não, exceto dois mais velhos que andavam no Instituto Universitário (dos Jesuítas), mas elas não, horários bem controlados.
Por vezes, às escondidas ouvíamos a BBC, num rádio que eu tinha comprado com um dinheiro que o meu pai me tinha dado, um salário à peça, por passar avisos postais para aquelas pessoas que não pagavam a água nos prazos devidos (o meu pai era tesoureiro da Fazenda Pública, da Câmara e da Caixa Geral de Depósitos, mistura e concentração essas que mostram um pouco o que eram essas instituições ou o serviço público na época). Apesar das senhoras da casa me terem levado o fio elétrico, não por causa das notícias, mas porque gastaria muito (?!).
Por coincidência única, no dia 25 de Abril, o pai de um de nós veio a Évora de automóvel e levou-nos ao Liceu de carro. Sobretudo um dos nossos amigos ia ufano por ir de carro, pois que na época todos chegavam a pé.
Começou a sentir-se o alvoroço. Notícias várias, contraditórias. Havia quem houvesse escutado na rádio que todos deveríamos ir para casa. Não se sabia se o golpe militar era para mudar para melhor ou se seria dos ultras (havia o exemplo do Chile no ano anterior e um tal Kaúlza que se inspirava na Rodésia branca).
Começam a chegar jornais que alguém comprava, aqueles grandes, como o Século ou o Diário de Notícias, edições diferentes nesse dia, com fotografias e comunicados.
Entretanto, tocava a sineta para as aulas. Tocava no Claustro, movida pela mão do senhor Francisco, chefe dos contínuos desde longos tempos, sempre simpático com os alunos, respeitoso, encarregado de educação de tantos, cujos pais não vinham facilmente à cidade.
Na aula de História começámos a falar mais abertamente. Já antes tínhamos percebido que o professor era diferente, já havia conversas anteriores fora das aulas, e algumas, talvez metáforas, ironias, sobre a situação.
Ainda fui à aula de Latim. O professor era muito conservador, fora em tempos seminarista, rígido e metódico de tal maneira que quando havia dúvidas sobre os sumários, pedíamos o caderno de um aluno de anos anteriores, ninguém entrava depois de ele entrar (qual segundo toque!), nem a aula era interrompida (cinco vezes por semana, incluindo sábado) porque ele dizia que “a aula é sagrada”! Fiquei aparvalhado quando ele disse que o regime tinha que mudar.
Quanto ao professor de Filosofia apenas o vimos quase de relance, assustado, desesperado. Quase tive pena dele, porque o senhor não andava bem e deve ter incarnado os males do regime, embora pense que nada tinha a ver com ele. Na época, eu até gostava de Filosofia, mas como aí não se aprendia nada, debitava umas coisas que estavam no manual. Havia, excecionalmente para o regime, dois manuais, do Bonifácio (aqui adotado) e do Saraiva (havia outro, do Magalhães Vilhena mas esse era clandestino e eu nem conhecia na época). Eu, como já não tinha paciência para decorar, só por isso, quando ele me perguntava qualquer coisa, respondia à minha maneira e ele inquiria-me sobre o manual que teria lido. Respondia que tinha visto no Saraiva e ele aceitava a resposta, talvez porque não lhe passasse pela cabeça que os alunos lessem outras coisas ou que tivessem interrogações! A professora de Português disse nada!
Iam chegando mais jornais, discutia-se, já ninguém ligava às aulas, os horários ficaram esquecidos, as colegas começara a tirar as batas e, nesse, e noutros dias, comecei a reparar que havia uma maior diversidade feminina do que presumia, até porque os recreios, antes separados, começaram a ser uma mistura de diálogos, alegria, vida e esperanças, e muito desassossego, sem saber o que vinha por aí, nesse tal Portugal até aí pluricontinental.
Ao almoço, creio que a comer uma sopa de beldroegas, recebi um telefonema, também coisa única (porque quase não havia telefones e era caro), da minha mãe. Preocupada comigo, mas ao mesmo tempo feliz, porque o meu primo Zé, que estava exilado em França (e do qual não se podia falar quase nada), talvez pudesse voltar e a guerra talvez acabasse para ele e para mim, futuro breve esperado desde há muito, embora eu já soubesse, e ainda sei a morada dele em Paris.
À tarde (ou seria no dia seguinte?), com outros, passei pela sede da PIDE, cercada por militares. Via-se fumo, a sair da chaminé, certamente queima de papéis comprometedores. Ouvi então um jovem oficial dizer em voz alta: saiam daí, cabrões, filhos de puta!
Compreendi então que o 25 de Abril estava a dar resultado, que as coisas iam mudar, porque no dia anterior seria totalmente improvável dizer qualquer coisa de parecido, sem que se fosse preso, torturado, enviado para a um presídio militar, para a frente de combate, posteriormente para a prisão e um futuro previsível de exclusões.
À noite continuavam os soldados em frente ao quartel-general. Eu e o meu amigo Moreira aproximámo-nos, como muita gente, dos soldados. Disse-me um: “não me arranjas umas sandes, que estamos há 20 horas sem comer!?
Fomos a correr a uma taberna no Largo de Alconchel e pedimos sandes ao dono. Perguntei quanto era e disse que era para os soldados. A resposta foi que não era nada porque era para os militares e que nos despachássemos. Fiquei com os olhos vermelhos e percebi que o entusiasmo desse dia não era apenas meu e dos meus amigos mas de tanta gente anónima que confiava na esperança de todos e talvez tivesse ainda esperado mais do que eu por este dia.

Compreendi que o golpe de estado não era apenas um movimento militar e que o país ia mesmo mudar, que os militares estavam voluntariamente ao serviço da liberdade, que o povo queria mudança, que tudo estava ser discutido e que o céu cinzento de ontem seria a partir de agora mais azul.

quarta-feira, 16 de março de 2016

As Alterações de Évora, segundo D. Francisco Manoel de Mello

Além de Severim de Faria, também D. Francisco Manoel de Mello escreveu sobre as Alterações de Évora de 1637, também conhecidas como a Revolta do Manuelinho. Estes motins, que depressa se generalizaram a todo o Alentejo, Algarve e Beira Baixa, foram eminentemente populares, como mostra o texto, e entre os vários motivos estavam o aumento crescente dos impostos (pagos pelo terceiro estado) para manter uma coroa que estava em guerras sucessivas, intermitentes ou cumulativas com algumas potências já importantes ou emergentes, como a Inglaterra, as Províncias Unidas (Países Baixos) e a França, com batalhas tanto em várias terras da Europa, como na América (tanto nas Índias castelhanas, como no Brasil e Maranhão) e noutras Índias, e  revoltas internas em várias regiões ou reinos associados (no séc. XVII, na Catalunha, Portugal, Nápoles e antes na Holanda ...).  Não se tratava de um estado unificado ainda, mas da união de muitos diferentes reinos, cada um com as suas leis e autonomias. A opressão dos povos, fazia com que o poder fosse cada vez mais associado ao poder castelhano e assim cresce o nacionalismo português, não da mesma forma para todos, porque muitos populares vêm estratos da  nobreza associados à política centralizadora do Conde-Duque de Olivares.

   De salientar as diferentes posições de portugueses neste contexto em que se desenrolam "em crescendo" os motins, os de "ofícios mecânicos" que D. Francisco chama também "Povo" "vulgo", "da peor gente da Republica". Aparecem também várias categorias de nobres, titulares, injuriados e suspeitos de apenas quererem manter os seus privilégios, ou membros da Câmara, assim como diferentes posições do clero, como o arcebispo também injuriado ou o papel ativo dos Jesuítas a favor dos populares. Assinam-se decretos e panfletos em nome de um Manuelinho, louco da cidade que ninguém poderia responsabilizar.
Assim fica a cidade ingovernável, no sentido tradicional e fica a cidade com três "governos", identificados com os diferentes estratos sociais:

 "De sorte que dentro da propria Cidade (cousa jâ mais vista) cõcorrião todos os tres modos do governo q asinão os Politicos: o dos nobres, q em lugar del Rey, sinificava o modo Monarquico, sempre cõtinuava cõ suas conferẽcias; o da Camara, que não desistindo de seu exercicio competente, representava o modo Aristocratico; e o do Povo, que em beneficio da liberdade proclamada, exercia hum Regimento comũ, por modo Democratico; donde qualquer do vulgo tinha igual autoridade, que o mais sábio, ou poderoso."

Mesmo assim, apesar da participação da "a pior gente da República", e apesar da pobreza, não houve notícia de roubos ou assaltos para proveito próprio. 

Extractos das Epanáforas ... 

   Obravão todos os Corregedores do Reyno, segundo suas ordens; e a nenhum erão jâ ocultas as grandes dificuldades, que o Povo oferecia a seu comprimento. Entre os mais, o Corregedor de Evora Andre de Moraes Sarmẽto, de profissão Legista, tratava com desregrado zelo, o assentamẽto do novo serviço, e repartição dos efeitos, que para seu cobro tocavão a sua Comarca. Havia já proposto tudo á Camara de aquella Cidade: donde os Vereadores della, â custa da vontade del Rey, e do clamor do Povo, igualmẽte mostravão desejo de obedecer, e resistir; porque de hũa parte, a obrigação de bons Vassallos, e da outra, a de bons Patricios, os dividião, e equivocavão, em tão contrarios efeitos.

 Pareceo, que a mayor impossibilidade, consistia na vontade do Povo; porque como consta de numero incapaz de castigo, soborno, ou conselho, he de ordinario, oposto a todos os respeitos politicos. Quiz então o Corregedor, encaminhar a obediẽcia das cabeça populares, e fez chamar diãte de si ao Juiz, e Escrivão do Povo, em os quaes de algũa maneira, entre nòs se reparte a autoridade de aquelle oficio, [A29] que os Romanos chamârão: Tribúno da Plebe. Erão seus nomes destes, Sesinando Rodrigues, e João Barradas, ambos da ordem mecanica; e que assi pellos lugares que tinhão da Republica, como pello credito de amadores da liberdade, se estimavão as pessoas de mayor poder, entre a multidão de aquelle Povo numeroso, e soberbo[…]

 A novidade de aquella diligencia, que o Corregedor intentâra com os dous Populares, a que tambem se ajuntava a prâtica comũa, que jà corria pello Povo, das novas imposiçoens que lhe repartião; abalou grande cantidade de gente em seguimento dos dous chamados, ou fosse por segurança, ou (que he o mais certo) para atemorizar com seu numero, o executor da violencia, que temião. Todos estes accidentes ameaçadores á Republica de custosa novidade, desconheceo, ou desprezou o Ministro real, contra quem se prevenião: procedendo em persuadir aos Populares, que tinha encerrados em seu proprio aposento, jâ com promessas, jà com ameaços, antes que convertidos â multidão, tornassem a participar do espiritu de sua variadade. […] Dizem, que então indignado o Corregedor à vista de tanta dureza, soltou palavras de grave injuria contra todo o Povo de Evora, e fez demostraçoens, de q queria enforcar, como o havia jurado, aos dous q tinha presentes[…]

 Então Sesinando, q era homẽ mais deliberado, chegandose à janela da propria casa em q se achavão, q como preparada ao movimento, olhava para a praça da Cidade, pedio em altas vozes socorro ao Povo, dizendolhe: Que morrião pello livrarem do trabalho que lhe querião dar os Ministros del Rey.  De nenhum se pode afirmar, ouvio inteiramente a voz do Juiz do Povo, segundo estavão todos dependentes de seu aceno.

 Quando com subito estrõdo, ardendo todos em ira, clamârão a morte do Corregedor [A31], e liberdade, e vida dos Populares. A hum mesmo tempo se levantou a voz, e a força; e quasi sem espaço de tempo, era entrada, e acesa a casa de aquelle Ministro. Duvidase se a furia do fogo, ou da gente, andou mais pronta em sua ruìna. O Corregedor alterado, confuso, e medroso, só intentava escapar a vida, que pode conseguir, ajudado de algũs nobres, e Religiosos, que logo o socorrerão, e industriosamente o trespassárão ao Convento de São Francisco; donde despois em habito diverso sahio da Cidade, e passou á Corte; e nella experimentou a fortuna dos que se perdem entre ruins sucessos, cuja direcção, nem por boa, se salva no Tribunal dos Juizos humanos, que só olhão os fins, e não os meyos de nossas acçoens. Porèm o Povo mais indignado, com esta fugida, aumentava suas desordens cõ mayores delitos. Afirmase por cousa rara, que toda a prata, ouro, e dinheiro q despojavão, queimarão na Praça sem algum respeito, como cousa pestifera, não havẽdo entre tãta multidão (q constava da peor gente da Republica) hũa só pessoa, que se movesse a salvar por seu proveito qualquer joya, das que outros entregavão ás chamas tão liberalmente. Tal era o odio, que pode mais que a cobiça, mais poderosa que tudo. Passou adiante o dano, e forão trazidos ao fogo todos os livros reaes, que servião de registro aos dereitos publicos; romperão as balanças dõde se cobrava o novo imposto da carne; devassárão a cadea, dando liberdade aos prezos de quem esperavão [A32] ser ajudados, saqueàrão os Cartorios, desbaratando papeis, e livros judiciaes. Porèm em todas suas acçoens, se mostrou sempre mayor â indignação, que ó interesse[…]

 Porém contra a mesma igualdade, que dos nobres foi observada naquelle trance, alguns tinhão para si, que â gente principal não desprazia aquella demostração, porque sendo nella o perigo só do vulgo, que intentava a resistencia, vinha a ser comum o fruto de aquelle movimento, se por elle se conseguisse a emenda dos males, que cõtaminavão a Republica. Outros entẽdião (não peor) que a nobreza só fora quẽ detivera a furia do Povo, em cuja cegueira não tinha lugar nenhũ respeito. [A33] Todavia vendo os grandes, e nobres de Evora, que sua inquietação passava jà de vingãça, e que âs vozes havião sucedido as armas; se ajuntárão em a Igreja de S. Antão, antiga, e principal freguezia da Cidade, o Arcebispo D. João Coutinho, D. Diogo de Castro, Cõde do Basto, Visorrei q fora de Portugal, D. Francisco de Mello Marques de Ferreira, D. Rodrigo de Mello seu irmão, D. Francisco de Portugal Conde do Vimioso, D. Francisco de Lencastre Comẽdador mór de Avìs, e D. Jorze de Mello. Entre os quaes tratãdose o remedio do sucedido, se intentârão varios meyos dirigidos á presente moderação, e para o que podia suceder, se despachàrão os avisos necessarios. Porèm, como a primeira diligẽcia convinha ser o socego de aquelle multidão, que cada hora se achava mais atrevida e resoluta; se começou com brandas práticas a tratar a redução do Povo. Deziãolhes: Quizessem deixar tudo ao cuidado da Camara, a quem tocava a causa publica, pois a ella, e não a elles pertencia a conservação de sua Cidade. E para que o negocio aparecesse diante del Rey com mais justificação, e autoridade, toda a nobreza que alli se achava presente, se oferecia para interceder com sua Magestade, atè alcançar sobre o perdão algum bom recurso, com que todos ficassem satisfeitos.   Esta proposta não souberão os Inquietos ouvir, nẽ responder, antes convertendo a ira para aquella parte, começârão a temerse da Congregação da nobreza. Por ser causa ordinaria entre os que desordenadamente [A34] seguem hum parecer, julgarẽ por inimigos a quantos lho não aprovão. Queixavãose, e dizião: Que os senhores, e poderosos de Evora, não sentião deshumanamente a execução do Povo de sua Patria, porque não erão do Povo; que para os Grandes, nunca havia novas leys, que não fossem interpretadas em seu comodo; e que ainda contra a observancia das antigas, se armavão de privilegios; porque ou não querião dever, usando de sua franqueza, ou não pagar, abusando de sua autoridade. Que procuravão merecer com o Principe, á custa das ruìnas da patria, e agora se congraçavão com o Povo, para se justificarem despois com el Rey, oferecendo por victima, ao sacrificio de sua fidelidade, o inocente, e simples vulgo, cujo sangue derramasse, como de animaes obedientes, costumava a barbara gentilidade; porèm que havendose justificado com el Rey, serião os mais crueis algozes para o Povo; finalmente, que ou se ajuntassem com os Populares, ou entre si se dividissem, ou procederião contra elles, como contra inimigos do bem publico. Esta tão dura reposta turbou de novo os animos dos Congregados; porque não só prometia o risco da nobreza, mas em o Povo dava mostras de querer passar adiante a mais custosas novidades. Sucedeo então, que sobrevindo as trevas da noite, se esforçârão tanto os inquietos, que juntos forão apedrejar o Paço Arcebispal, injuriando com atrevidas palavras ao Prelado, e sua familia. Outro semelhante, ou mayor tropel, entrou pellas portas do Conde Dom Diogo de Castro, a quem aborrecião, posto que veneravão, sem outra causa, que haver [A35] sido grande Ministro. […]

 Mas em meyo desta confusão, seguião os melhores o parecer dos Padres da Companhia, que entre nòs com grande honra gozão o nome de Apostolos, e são em Evora altamente respeitados, pella concurrencia de sujeitos grandes, que ocupão naquella sua Universidade. [A36] Porém elles, ou fosse pello antigo amor aos Reys Portuguezes, ou porque se não atrevessem a contradizer ainda a furia do Povo, dizem que tacitamente contribuião às esperanças de algũa novidade. […]

Fora poucos annos antes, conhecido em aquella Cidade, hum homem doudo, e dizidor, e por isso [A40] aceitissimo ao Povo, cujo nome era Manoel, e por jogo, e sua notavel grãdeza irònicamente Manoelinho. Usava fazer pràticas pellas ruas ao vulgo; a quẽ com vozes desordenadas, e historias rediculas excitava sẽpre a alegria, dõde procedeo ser na Cidade, e seus contornos, a pessoa mais conhecida; a cuja lembrãça recorrẽdo algũs de aquelles inquietos, foi ordenado entre elles, que todas as convocações, cartas, editos, e ordẽs, se despachassem debaixo do sinal de Manoelinho de Evora; porq assi se escusava de ser jà mais conhecido o Autor destas obras; ficando aquelle nome, desde então, constituido por sinal publico, para que se pudessem entender sem confusão, em seus chamamentos. Nesta observancia amanhecião cada dia fixados pellas praças, e portas da Cidade, Provisões, Bandos, e Decretos pertencentes ao estabelicimento de sua defensa[…]



 D. FRANCISCO MANUEL DE MELO,EPANÁFORAS DE VÁRIA HISTÓRIA PORTUGUESA,    
EDIÇÃO SEMIDIPLOMÁTICA POR  EVELINA VERDELHO

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Dois postais inéditos de Mário de Sá-Carneiro ao seu amigo José Stromp


   Encontrei estes postais num álbum que me deu a minha avó já há muitos anos. Sempre conheci este álbum na casa dos meus avós na vila do Cano. Aí pelos finais dos anos sessenta uma sobrinha da minha avó pediu à minha tia selos antigos para uma obra qualquer de caridade, parece-me que relacionada com os soldados que estavam nas colónias. Com alguma falta de cuidado os selos de muitos desses postais foram retirados. Uma vez até mostrei a um especialista em filatelia. Disse-me que não valia nada porque os selos tinham sido arrancados de qualquer maneira. 

   Intrigava-me um apelido que aí aparecia muitas vezes: Stromp. Mais surpreendido fiquei com a assinatura Sá Carneiro. Confirmei-a comparando com outras dele. E a morada que refere é a da sua casa na época: Travessa do Carmo. As moradas de Stromp também condizem.

Os postais são do mesmo dia 23 de Julho de 1909. Envia dois para o seu amigo, um para a morada do pai deste, no consultório que teria no Largo do Intendente e outro para a casa do Lumiar. É interessante que no segundo caso ele escreve simplesmente Lumiar mas o postal foi entregue à mesma. Imagine-se o que seriam esses "arredores" de Lisboa.

    Vê-se que tem urgência, refere uma traduçã que tinha feito. Por esta altura teria uns dezanove anos.
   O José Stromp, seu amigo, foi um dos fundadores do Sporting.
Os temas dos postais também têm interesse. São costumes populares, exóticos para quem vive num ambiente urbano, algo românticos, sobretudo o da mulher de Azurara, terra de pescadores (?); o outro de um camponês da Beira Alta.
Provavelmente com algum sentido de humor e informalidade de quem conhece a família.









sexta-feira, 23 de maio de 2014

Fazer contas à vida


Teremos eleições europeias dia 25 de maio. No mesmo dia há uma reunião do BCE em Lisboa. Recordemos que o Banco Central Europeu, juntamente com a Comissão Europeia e o FMI emprestaram dinheiro a Portugal com juros muito superiores ao que emprestaram a qualquer banco, que por sua vez emprestava ao Estado, ganhando uma comissão altíssima. A tal Troika, de que falamos, exigiu e continua, abaixamento de salários, diminuição e supressão de direitos que custaram muitos sacrifícios e prisões a conquistar, vendas ao desbarato de empresas estratégicas… Lembremo-nos que pela lei portuguesa, e acho bem, a véspera do dia das eleições é para reflexão e no próprio dia não pode haver qualquer propaganda eleitoral, ideológica que possa influenciar os cidadãos.
Lembremo-nos também que a crise começou por ser financeira, bancária, que foi exportada a partir dos EUA, apanhou a fragilidade dos bancos especuladores europeus, mais a expansão de outros bancos de mafiosos, como O BPN e os estados foram obrigados pelos que mandam e pelos seus eunucos a pagar, o que tem significado, e duramente, que são os cidadãos que têm pago.
Pois o BCE vem fazer uma reunião no dia 25 de maio em Lisboa. O que vem fazer? Por mais que digam outras coisas, vem simplesmente humilhar, enxovalhar, mostrar a prepotência, mostrar quem manda, espezinhar os que têm pago para enriquecer os bancos alemães, franceses e outros, para resolver os seus problemas, à custa dos pagamentos dos povos de Portugal, da Grécia, da Irlanda, de Itália …
Num dia de eleições, vêm esses burocratas que escondem os políticos, que não se responsabilizam ou se vendem, vêm contra a lei de um país independente, mostrar quem manda.
Não venham com essa treta do mercado. Há mercado, há mercados, há mais que uma economia, há economia política, parece que esquecida, há quem ganhe sem trabalho, há especulação e é de especulação que se tem tratado. O dinheiro não desapareceu, mudou de sítio, há quem lucre com os sacrifícios de outros.
Por cá, temos tido um governo de coligação do PSD e CDS. Antes das eleições queriam que viesse a Troika para resolver os problemas, queriam mais que a Troika, foram além da Troika, disseram que era disparate aumentar impostos, não só aumentaram impostos, como geraram desemprego, levaram empresas viáveis à falência, levaram centenas de milhares de pessoas à emigração e … não estão satisfeitos.
 Nem sequer quiseram aprovar projetos que punham limites à promiscuidade entre o mundo das empresas e os cargos políticos, como aqueles que foram apresentados recentemente pelo Bloco de Esquerda e o Partido Comunista. Votaram contra o PSD, o CDS e o PS. Porquê? Porque tiveram e têm compromissos e clientelas.E se não for isso, demonstrem-no com atitudes diferentes.
Também não me venham com a conversa que todos são iguais. Há políticos que não ganharam com o BPN, há políticos que não fizeram o programa económico do PSD e logo ficaram à frente da EDP vendida a um monopólio chinês, há gente que não pertence a essas sociedades que fazem o estado pagar (nós) pelos seus serviços, de que têm benefícios vários.
Há quem prefira a abstenção. Por mais desculpas que se inventem, abstenção é ficar em casa e nada fazer. Admito o voto em branco, como arma política, não é ficar em casa e depois dizer que os outros todos é que têm a culpa, quais crianças inocentes ainda a gatinhar.
Também me aborrecem os “enganados” e os “arrependidos”. Deveriam fazer umas pequenas contas sobre a sua vida e estar um pouco atentos. Poderiam pensar um pouco mais neles e nos outros. Desculpas há muitas, e por vezes, cai-se mesmo no ridículo.
Nestas eleições há que pensar no que tem acontecido em Portugal, um país que ainda tem mais de oito séculos de existência e que não é menos que os outros, dentro do princípio da subsidiariedade, que tem dois lados, a União Europeia, fruto de todos os estados que a integram, e os estados que também exigem.
Queremos ser uma colónia, com um ou dois estados imperiais? Queremos prescindir dos direitos civis, democráticos, sociais, culturais? Queremos uma Europa xenófoba, com uns mais importantes que outros, a mandarem nos que fornecem mão-de-obra barata?
Há que pensar nisto tudo e mais ainda; há que ver que também que isto tudo pode mudar, mesmo não havendo revoluções, mas mais um passo.
Eles também tremem. Treme este governo, tremem outros, treme a Comissão Europeia, treme o mundo financeiro.

Tremem mais se os fizermos tremer.

sábado, 19 de abril de 2014

Sobre Gabriel Garcia Márquez


Eu já não gostava muito daquela expressão “realismo mágico”, sobre este e outros escritores da América do Sul. Mas esta ainda entendo como um ponto de vista. Parece-me que o tal realismo mágico é apenas uma expressão de quem vive noutra civilização, mais industrializada ou que já ultrapassou essa fase, mais eficiente, mais comprometida com objetivos que visam o lucro imediato e a longo prazo: a civilização do relógio, agora digital, do tempo que é dinheiro e vice-versa, onde pode haver uns tempos programados para férias, artes e literaturas. Dificilmente, a partir deste ponto de vista se compreende outras realidades, que aparecem como exóticas, tal como no século XIX aparecia a Espanha ou Portugal, parentes próximos e seguros, ainda com alguma civilização, ao contrário da África dos “selvagens”, embora perto, mas estranhos, ainda reveladores dos costumes do antigo regime, contraditoriamente mantendo os tempos que já tinham passado, de que se sentia alguma nostalgia e também algum carinho protetor.

Muitos não terão reparado que Gabriel Garcia Márquez falava mesmo da realidade, certamente com algumas misturas de realidades, como um excelente contador de estórias que acrescenta qualquer coisa, que sabe usar os tempos das personagens e dos ouvintes. Como por cá, mas sempre de forma diferente, com a delícia de uma linguagem de quem narra para quem ouve e lê, com tempo, como fizeram Camilo Castelo Branco ou Manuel da Fonseca, ou no Brasil Jorge Amado e Graciliano Ramos ou Cervantes de uma literatura que se tornou universal, a partir de aldeias ou regiões reais.

Continua a circular desde há uma dúzia de anos uma falsa carta de despedida de Gabriel Garcia Márquez que circula ciclicamente  e que ele repudiou veementemente. Por muito que custe a alguns, ele não estava arrependido nem nunca produziu um texto onde a palavra Deus aparece tanta vez, num estilo que não era o dele. Há que ler as suas obras inconfundíveis e não cair na esparrela, reproduzindo um texto que não honra a sua memória. Há que ler e não difundir para as redes só porque se acha interessante num primeiro momento.

É de pensar quem é que nos controla. Se procurarmos no Google ou outros, aparece nos primeiros lugares o tal discurso e só depois de muito procurar, poderá ser encontrado um artigo de alguém a desmentir. Há organizações que manipulam isto de modo a convencer os outros, utilizando um mito recorrente de que os ateus se voltam para Deus na hora da morte. Noutros casos, quando a informação não agrada a quem manda, a informação desaparece. Há por aí umas tendências totalitárias que querem obrigar ao pensamento único, usando ínvios caminhos de sedução com palavras que entram facilmente no ouvido de quem já as espera ou já desespera de muita coisa. Pelo menos que se respeite os mortos e a obra dos que "da lei da morte se vão libertando".

Há uns que teimam em definir o que os outros são. Há quem olhe para outros como espécies exóticas que nos dão algum prazer nas férias ou noutros descansos. O melhor é ler a obra e que cada um faça dela o que quiser. Foi para isso que foi feita.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Rimas várias para um jantar

Há uns anos (um pouco mais de dez), fiz estes versos por brincadeira. Uma pequena "vingança" pois tinha uma turma que acompanhei durante três anos, várias aulas por semana. No final eram dezasseis alunas, cada uma de sua maneira, normalmente bem dispostas, mas algumas um pouco complicadas, com humores variados. Houve um jantar no final do 12º ano. Não pude ir já não sei porquê. Mandei estes versos de que estava já quase esquecido. Mas lembro-me de quase toda a gente. Algumas quadras eram individualizadas, outras gerais. Alguém se lembrou delas sem já saber do contexto. Mas guardou-as.
Aqui seguem:

Rimas várias para um jantar

PRÓLOGO e INVOCAÇÃO

Entrem senhoras e senhores
Oiçam esta história de pasmar
A história das dezasseis mulheres
Que ao 12º haveriam de chegar

Até Cristo quando subiu aos Céus
Disse a todos os mortais
Aturem-nas agora vocês
Que eu já não as aturo mais

Também Sebastião, o das setas
Tremeu e levantou a mão
Ao ver tanta carta de condução
E o fazer das curvas rectas

E mesmo Maria Madalena
Com seus choros e alegrias
Quase se arrependeu, mas teve pena
De ver na turma tantas Marias

Mas ó Musa minha adorada
Inspira este teu fiel criado
Dá-lhe palavras e alguma pancada
Pois já devia estar deitado
e descansado

E vós ninfas do límpido Xarrama
Ajudai este pobre secretário
Que Neptuno e Vénus que outro ama
Soltem as mágoas do armário

Foram três anos de falatório
Centenas de horas de bichanar
Noventa vezes dois de Purgatório
Quinhentas horas a reclamar

Às duas por três estou mal disposta
Às três por quatro preciso de sair
Vinte faltas e a mesa posta
Três vezes trinta e três para cantar e rir.

Do décimo ao décimo segundo
Vieram atentas e esperançosas
Chegam com as incertezas do mundo
Partem crianças, chegam fermosas

(esta é para rir; também por causa das calorias e outras manias)

Alguém disse que isto era as Doroteias
Desengane-se quem isso ouviu
Já ninguém aqui cose meias
São artistas como nunca se viu

Vamos à história e às personagens
O estimado público espera para ver
Alguma atenção e breves paragens
Abençoado seja este prazer
                        São horas de comer!

ANDANTE (e allegro ma non troppo)


De presidiárias está cheio o mundo
Peregrinemos aqui e além
Seja Sartre o mais profundo
Oito a catorze. Amen!

A verdade acima de tudo,
Alegria, trabalho e amizade.
A protectora do sortudo
Sabe o que é a solidariedade

É uma força da natureza
Sai a ela, à mãe e ao pai
Canta a vida e não tem a certeza
Quer a mudança social ... e vai!

Ribomba o trovão no momento
Desfaz-se no mesmo segundo
E nisto surge um encantamento
Um desejo de mudar profundo.

E espanta-se quando se sente
E o sentir é forma de estar
E é isso que faz a gente
E é esse sorriso que a faz voar

Não é de Tróia mas da terra dura
Sabe o que quer e luta por isso
Segue em frente e fura fura
É ainda uma flor em viço

De profundis levanta a neve
Racional, interroga o mundo
Ajuda os outros, ergue-se breve
O seu discurso é profundo

Olha a criança que já passou
E as contradições que mostra à gente
Será que percebe que já mudou?
E que tem pés para ir em frente?

Não é de Pavia mas vai
Não canta mas segue caminho
Às vezes pensa que cai
Segue em frente, com carinho.

Querem Direito, mas ela não quer
Ela fura, e corre segura
Adora a polémica e o malmequer
Vai fermosa e bem madura

Simplicidade é um dom
Diz tanta coisa sem falar
Tem um jeito simples e bom
Uma forma calma no tratar

Atenta, trabalhadora e simpática
Calma, vai além do que faz
Desde a História à Matemática
Também sabe do que é capaz

Ai essa vontade de dizer mais
Ai esse querer e não saber
Pergunta para onde vais
O caminho é não temer

Sorriso discreto e bem bonito
Simplicidade na forma de estar
Intuição e sentimento límpido
Vontade de ir além e voltar

É uma flor que há-de seguir
Continuam as dúvidas para onde vai
Descobriu algo para onde ir
Ou ainda faz o que não quer ouvir?

Anda a História a nove e tal
Mais uma actriz de carreira
O que pretende afinal?
Devagar sobe a ladeira

EPÍLOGO sem Cântico Final (e com exames à espera)

E sem esquecer os demais
Que no caminho ficaram por ir
Mais do que choros e ais
O melhor é começar por rir!

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A propósito de Mandela

Apenas para lembrar algumas ideias, que hoje parecem evidentes mas que de vez em quando, “por razões de estado”, parecem ser facilmente esquecidas.
Se a figura de Nelson Mandela parece hoje quase consensual, convém recordar que esteve 27 anos preso e torturado, acusado de terrorismo e incitamento à violência, por um regime ditatorial que legalizou o apartheid, portanto, a descriminação racial.
Quando alguém propunha medidas contra a África do Sul e pela libertação dos presos políticos, logo vinham as recusas justificadas pelo incitamento ao ódio da parte do ANC e de Nelson Mandela e pelo perigo comunista. Basta ver as posições de países como Israel, Reino Unido, EUA e Portugal até ao 25 de Abril. Poderíamos falar de outros, porque houve muitos “esquecimentos e  hesitações.
Aqui se transcrevem textos de alguns escritos nesses estados. Repare-se em Locke, a grande referência teórica do sistema parlamentar inglês, há mais de trezentos anos, a Declaração de Independência dos EUA, no século XVIII, a Constituição portuguesa, mais recente.
Parece que alguns governos só reclamam as liberdades para si.

John Locke, The Second Treatise of Civil Government, CHAP. XIX,1690

[…] whenever the legislators endeavour to take  away, and destroy the property of the people, or to reduce them to slavery under arbitrary power, they put themselves into a state of war with the people, who are thereupon absolved from any farther obedience, and are left to the common refuge, which God hath provided for all men, against force and violence. Whensoever therefore the legislative shall transgress this fundamental rule of society; and either by ambition, fear, folly or corruption, endeavour to grasp themselves, or put into the hands of any other, an absolute power over the lives, liberties, and estates of the people; by this breach of trust they forfeit the power the people had put into their hands for quite contrary ends, and it devolves to the people, who. have a right to resume their original liberty […]

We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness. — That to secure these rights, Governments are instituted among Men, deriving their just powers from the consent of the governed, — That whenever any Form of Government becomes destructive of these ends, it is the Right of the People to alter or to abolish it, and to institute new Government, laying its foundation on such principles and organizing its powers in such form, as to them shall seem most likely to effect their Safety and Happiness.

Constituição da República Portuguesa, 1976
Artigo 7.º
Relações internacionais
[…]
2. Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança colectiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos.
3. Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito à insurreição contra todas as formas de opressão.

Nota: os textos estão no original, não por uma moda qualquer, mas porque assim “soam” melhor, são mais autênticos; realçamos algumas frases a negrito. 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

As mulheres da Europa e as japôas


A visão que se tem do mundo reflete não apenas o que se consegue ver mas também a forma como se vê a cultura de que se faz parte.

Algumas frase de Luís Fróis, escritor da segunda metade do século XVI, jesuíta, que fala sobre as mulheres da Europa e do Japão. Certamente também um ponto de vista masculino, apesar da curiosidade pelo outro (neste caso as outras, que os padres não são imunes a estas vistas).









in História e Antologia da Literatura Portuguesa do Sé. XVI, Fundação Calouste Gulbenkian

sábado, 2 de novembro de 2013

Honra à sua memória.


As Alterações de Évora de 1637 foram fundamentais para o processo que levou à Restauração de 1640. Foram motivo de grande preocupação para a monarquia, dado o exemplo que se poderia seguir nos outros reinos do mesmo monarca, o que de facto aconteceu: em 1640 estala a grande revolta da Catalunha, começada pelos camponeses que afluíram a Barcelona, “Els segadors” (os ceifeiros). Ainda hoje o hino da Catalunha é a eles dedicado.

A revolta amedrontou a nobreza portuguesa, uns ficaram em casa discretamente, como o Duque de Bragança, outros continuavam na corte em Madrid ou nos exércitos espanhóis na Flandres, Itália etc., outros ajudarão na repressão. Mas era comum da parte da nobreza o desprezo pela gente vil e sem nome e pelos “arruaceiros”, os pícaros da rua, gente de ofícios mecânicos, inferiores a eles, que eram de mãos limpas. (as expressões em itálico eram assim usadas no Antigo Regime, algumas das quais nestes extratos). Mas repare-se o espanto: revoltavam-se, eram pobres mas não roubavam nada, apesar de, no momento terem tudo nas mãos. Mas os inquietos destruiam balanças, ecritos etc. que punham em causa as fontes de rendimento da monarquia e da nobreza, os privilégios e o seu papel na manutenção da ordem.

Repare-se também na posição do duque de Medina Sidónia, ele que era irmão da futura rainha de Portugal (aquela de quem se diz que mais valia ser rainha por um dia que duquesa toda a vida): segundo o cronista foi ainda mais duro para com os populares, para mostrar o seu poder, como um dos grandes de Espanha.

Poderia ainda perguntar-se: se não tivesse havido esta revolta teria havido a Restauração da Independência? Será que os catalães teriam feito a revolta de 1640, permitindo que os portugueses preparassem a defensiva, enquanto os exércitos andavam a combater os revoltosos? O que teria sido o Brasil: talvez um conjunto de colónias francesas (os franceses já tinham tentado ocupar o Rio de Janeiro, andavam pelo Maranhão), ou holandesas (estabeleceram-se no Recife) …?


Notas: a negrito enfatizam-se algumas expressões do texto citado de D. Francisco Manuel de Melo, Epanáforas …. As imagens são da atual Praça do Giraldo: uma placa comemorativa na parede exterior da Igreja de S. Antão, com os nomes dos que dirigiram a revolta e a fonte henriquina, coroada por Filipe I de Portugal com a coroa dos Habsburgos.


Porèm o Povo mais indignado, com esta fugida, aumentava suas desordens cõ mayores delitos. Afirmase por cousa rara, que toda a prata, ouro, e dinheiro q despojavão, queimarão na Praça sem algum respeito, como cousa pestifera, não havẽdo entre tãta multidão (q constava da peor gente da Republica) hũa só pessoa, que se movesse a salvar por seu proveito qualquer joya, das que outros entregavão ás chamas tão liberalmente. Tal era o odio, que pode mais que a cobiça, mais poderosa que tudo. Passou adiante o dano, e forão trazidos ao fogo todos os livros reaes, que servião de registro aos dereitos publicos; romperão as balanças dõde se cobrava o novo imposto da carne; devassárão a cadea, dando liberdade aos prezos de quem esperavão [A32] ser ajudados, saqueàrão os Cartorios, desbaratando papeis, e livros judiciaes. Porèm em todas suas acçoens, se mostrou sempre mayor â indignação, que ó interesse.
”[…]
. Queixavãose, e dizião: Que os senhores, e poderosos de Evora, não sentião deshumanamente a execução do Povo de sua Patria, porque não erão do Povo; que para os Grandes, nunca havia novas leys, que não fossem interpretadas em seu comodo; e que ainda contra a observancia das antigas, se armavão de privilegios; porque ou não querião dever, usando de sua franqueza, ou não pagar, abusando de sua autoridade. Que procuravão merecer com o Principe, á custa das ruìnas da patria, e agora se congraçavão com o Povo, para se justificarem despois com el Rey, oferecendo por victima, ao sacrificio de sua fidelidade, o inocente, e simples vulgo, cujo sangue derramasse, como de animaes obedientes, costumava a barbara gentilidade; porèm que havendose justificado com el Rey, serião os mais crueis algozes para o Povo; finalmente, que ou se ajuntassem com os Populares, ou entre si se dividissem, ou procederião contra elles, como contra inimigos do bem publico.
[…]
Fora poucos annos antes, conhecido em aquella Cidade, hum homem doudo, e dizidor, e por isso [A40] aceitissimo ao Povo, cujo nome era Manoel, e por jogo, e sua notavel grãdeza irònicamente Manoelinho. Usava fazer pràticas pellas ruas ao vulgo; a quẽ com vozes desordenadas, e historias rediculas excitava sẽpre a alegria, dõde procedeo ser na Cidade, e seus contornos, a pessoa mais conhecida; a cuja lembrãça recorrẽdo algũs de aquelles inquietos, foi ordenado entre elles, que todas as convocações, cartas, editos, e ordẽs, se despachassem debaixo do sinal de Manoelinho de Evora; porq assi se escusava de ser jà mais conhecido o Autor destas obras; ficando aquelle nome, desde então, constituido por sinal publico, para que se pudessem entender sem confusão, em seus chamamentos. Nesta observancia amanhecião cada dia fixados pellas praças, e portas da Cidade, Provisões, Bandos, e Decretos pertencentes ao estabelicimento de sua defensa: debaixo desta forma, se  escrevião, e despachavão cartas às Camaras do Reyno, se despedião os Ministros de seus oficios, e se acomodavão nelles outros, em virtude de hũ simples provimẽto, assinado por Manoelinho de Evora. […]

O Conselho de Estado de Espanha, ainda que não tão florente, como nos tempos passados, se achava todavia rico de sugeitos de grande prudencia, a quem parecia: Que o açoute soministrado aos Inquietos, se devia reger com grande temperança, olhandose o estado do Imperio, dilatação, e contrastes de Espanha. Que por nenhum modo fosse tal, que estimulados de lástima, ou medo, os Vassallos, que em Portugal se achavão firmes (mais, e melhores) quisessem obrar de maneira, que recebendo todos o golpe, sahisse mais pequeno a cada hum: porque muytas vezes sucede, que a porfia, ou excesso da emenda, estraga pella desesperação [A135] de muytos, muyto mais, que com a pena de poucos remedêa. Que a revolação se não deixasse, nem à ira, nem ao esquecimento, antes q cõ vagarosa, e apressada destreza, se fosse cauterizando aquelle erpe interior, que lavrava pello corpo da nação Portugueza, primeiro que chegasse ao coração, e se fizesse mortal, decepandoo da união da Monarquia. Que o remedio, continha duas partes: a presente de castigo, que se havia de executar logo, e a futura de prevenção, que tambem desde logo, se havia de ir introduzindo. Mas que medidas ambas, não erão de tanta importancia a primeira, como a segũda. […]

Em quanto em Alentejo, e suas fronteiras, ou jà os Ministros das armas, ou da justiça, procedião desta sorte, pello Reyno do Algarve, andava mais soberba a vingança. Estava seu castigo (como dissemos) á conta do Duque de Medina Sidonia, que jâ havia arribado a Ayamonte, com hum suficiẽte troço de exercito, de gente mais lustrosa, que disciplinada. He certo, que aquelle Duque, não tinha outras ordens de mayor rigor, que o de Bejar, acerca da entrada no Reyno; mas ou porque julgandose mais soberano, lhe parecesse q o negocio donde sua pessoa intervinha, della só havia de ser dependẽte, ou porq o Marques de Valparayzo, que o acõselhava, por de terrivel natural, o guiase por caminhos mais asperos, [A137] determinou proceder no Algarve, mais q o de Bejar, em Alentejo, riguroso, e absoluto.
[...]
A Justiça foi proseguindo em suas averiguaçoens, atè proscrever, como Reos de sedição, e cabeças de amotinados, a Sesinando Rodrigues, e João Barradas: pello qual  crime, forão condenados à morte, e em estàtua justiçados, com horrẽdos pregões, e bandos, prometedores de grãde honra, e interesse, a qualquer pessoa, que vivos, ou mortos, os entregasse nas mãos da Justiça. Algũs outros dos que na alteração tiverão menor parte, e por isso menos advertidos se confiárão, forão tãbem presos, econdenados, huns á forca, outros a galés, e desterros perpetuos; mas  todos homẽs vìs, e sem nome, e que os mais erão delinquentes, e por outros delitos merecedores das penas, que só ao caso da sedição referião.

Alterações de Évora e exércitos espanhóis


   Cõstava este exercito de Cãtâbria, de varios terços de Infãtaria Castelhana, quasi toda forçada para [A85] a guerra; a qual entre a aspereza dos montes de Guepúzcua, agora detida dos frios, agora dificultada do aperto dos passos, se conservava, mas sempre com vivo desejo de liberdade. Estimavase seu numero, dentro dos quarteis, em oito mil Infantes, que marchando soltos, e por terras largas, e conhecidas, se diminuìrão de sorte, que antes de arribarem â Estremadura, erão menos de quatro mil, e menos os que chegàrão ao novo alojamento. A mais rigurosa parte de aquellas armas, consistia em hum Regimento de Dragoens: nova milicia entre nós, e que de Alemanha trouxera a seu cargo Dom Pedro de Santa Cizilia, de quem no livro primeiro de nossa Catalunha, fazemos particular menção. Foi nomeado por General deste exercito, o Duque de Bejar, moço de desasete annos; havendose sua riqueza, e estado por suficiencia, disserão: Que por ser o mayor senhor da Estremadura, donde o exercito se juntava, lhe competia o posto[…]

   Mas como já no Reyno do Algarve, mostrava para revolverse mayores designios, foi tãbem mayor o cuidado de se lhe aplicar o remedio; porque os portos, de q aquelle Reyno he abũdante, causavão muyto mais receyo, que suas proprias forças. Por esta razão se ordenou, que o Duque de Medina Sidonia, Capitão General da Andaluzia, ajuntasse da gente de seu cargo, atè seis mil Infantes, e com os ginetes da costa, e alguns voluntarios, formasse outro exercito, com q se avesinhasse ao Algarve.

   O rei Filipe IV de Espanha, terceiro de Portugal estava a braços com várias guerras na Europa e no mundo, Países Baixos, Inglaterra, França e corsários, piratas, contrabandistas, com as remessas de prata do Perú a diminuírem, gastos da monarquia cada vez maiores e resolve, a conselho ou por ordem do seu valido, o Conde-Duque de Olivares, aumentar ainda mais os impostos. Os do reino de Castela já não aguentavam mais, já tinha havido até uma revolta popular no País Basco, a população até diminuía com a fome. Os súbditos dos outros reinos (Aragão, Portugal …)  entendiam que não deveriam financiar as guerras de Castela, invocando as suas leis e autonomia. E, no entanto, os impostos aumentavam e os recrutamentos militares também.

   Depois de outros motins é a vez da grande revolta popular de Évora que se estende pelo Alentejo, Algarve e Beiras: As alterações de Évora, também conhecidas por revolta do Manuelinho..
D. Francisco Manuel de Melo vem ao serviço do rei a Évora e descreve, tal como Severim de Faria os acontecimentos e o contexto.

   O Conde-Duque não confiava muito nos portugueses e por isso envia exércitos espanhóis, apesar da nobreza portuguesa não ter participado nos acontecimentos, opondo-se até aos vis populares, tal como D. João, Duque de Bragança, rei a partir de 1640. É interessante que um dos exércitos, que sai da Andaluzia é comandado pelo Duque de Medina Sidónia, da família Guzman, irmão de D. Luísa de Gusmão e cunhado de D. João, que anos mais tarde haveria de tentar uma conspiração para a separação da Andaluzia, com o apoio do rei de Portugal, que foi paga com a morte do Marquês de Ayamonte (também Guzman), por ordem do Conde- Duque (também Guzman).
O outro exército, não fosse os crimes cometidos, quase caía no ridículo. Segundo o cronista, saí da Cantábria e País Basco com 8000 homens a pé (imagine-se atravessar a Espanha, quase sem estradas) e chega à fronteira portuguesa com apenas 4000, isto é cerca de metade teriam desertado. Ainda por cima é comandado por um rapaz de 17 anos, porque era da família mais importante da Extremadura.

Nota: sublinhados nossos. Ver também texto de Severim de Faria sobre Alterações de Évora

Textos de D. FRANCISCO MANUEL DE MELO, EPANÁFORAS DE VÁRIA HISTÓRIA PORTUGUESA, EDIÇÃO SEMIDIPLOMÁTICA, POR EVELINA VERDELHO, CENTRO DE ESTUDOS DE LINGUÍSTICA GERAL E APLICADA (CELGA) FACULDADE DE LETRAS, UNIVERSIDADE DE COIMBRA, 2007