Nesta discussão deslocada (digo deslocada porque o que está em questão é o financiamento de privados com dinheiros públicos ao mesmo tempo que o estado desperdiça e não financia recursos pagos por todos) usa-se por vezes o argumento de que os pais trabalham e nas escolas públicas não há atividades para além das aulas, enquanto os progenitores estão ocupados.
Só em parte é verdade. Muitas escolas públicas também o fazem, e fazem mais que alguns privados que praticam a censura (nem todos e há que distinguir cooperativas a sério de empresas lucrativas), mas não fazem mais porque não as deixam fazer, isto é, porque o estado desvia verbas para os privados e para outros destinos e porque continua a centralizar tudo.
Se o Estado prescindir da prisão e teia burocrática, mesmo com menos recursos financeiros, as escolas, com autonomia a sério, com projetos próprios, diferenciados, poderão fazer muito mais, sem estarem sujeitas à inculcação de ideologias religiosas conservadoras (não confundir com religiões) ou reprodução e incremento de práticas sociais discriminatórias, inconcebíveis num estado onde todos têm direitos.
domingo, 8 de maio de 2016
O presidente Sousa e o Acordo Ortográfico.
A
visita do presidente da República a Moçambique correu bem, até foi alegre e
meteu dança. Nada de mal ou até tudo bem, até para esquecer a má disposição
crónica do anterior presidente sectário. Mas o presidente Sousa confundiu
algumas posições pessoais e o hábito de comentar tudo com a função de
presidente que representa a República Portuguesa e os seus compromissos a
propósito do Acordo Ortográfico. Apelou até, numa linguagem dúbia, para que
Moçambique e Angola não ratificassem o Acordo Ortográfico, que já aprovaram há
longos anos, mas ainda não ratificaram.
Os
problemas destes países têm sido, antes de mais os custos e as prioridades, e
não qualquer posição purista ou de natureza linguística. Os problemas que têm,
desde as guerras passadas e ameaças de recrudescimento, às questões de
desenvolvimento, desigualdade, instabilidade, corrupção … são preocupações
muito mais importantes do que a normalização de uma escrita de uma língua que
muitos ainda não podem usufruir. Sim, e uma das prioridades seria o combate ao
analfabetismo e o uso da língua, como fatores de unificação nacional e
pressuposto para o desenvolvimento. E também é isso que eles dizem.
Parece
estranho mandar recados em discursos oficiais, para cá, em países que são
independentes. Suponho que não foi essa a intenção mas não se pode cair no
risco de confundir um estado que tem uma dinâmica própria, e é independente,
com as emoções de quem lá foi de férias quando era jovem e o pai administrava a
colónia. Mas mais ainda, não se pode cair também na tentação de, através do “porreirismo”
paternalista, abdicar da posição da chefia e representação do estado português,
que fez, como outros em pé de igualdade, acordos internacionais e simular que
se mete uma cunha a outro estado para ajudar a polémica em Portugal e tentar
reverter o que foi acordado com diferentes estados, sem que alguém lhe tivesse
dado mandato para isso.
Continua-se
a discutir o Acordo Ortográfico de uma língua que é comum a vários estados e
que não é propriedade exclusiva de nenhum, mas património comum. Continua-se
deliberadamente a confundir fala com escrita, como se por magia, todas as
centenas formas de falar o português se unificassem ou se pervertessem por um
acordo.
Mas
a discussão já começou há muito tempo, e é pena que muitos só tivesse começado
a discutir dezenas de anos depois do acordado e ratificado por vários países.
Recordem-se algumas datas para além de outras:
1990 - Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa assinado a 16 de dezembro;
1996 - Ratificação do Acordo Ortográfico de 1990 por Portugal, Brasil e Cabo Verde
2004 - Celebração do Segundo Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que autoriza a adesão de Timor-Leste e prevê que basta a ratificação por apenas três países para que o Acordo Ortográfico de 1990 entre em vigor
2006 - Ratificação do documento oficial por Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe
2009 - Entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990 a 13 de maio
2010 - Guiné-Bissau ratifica o Acordo Ortográfico, faltando apenas a ratificação de Angola e Moçambique
1996 - Ratificação do Acordo Ortográfico de 1990 por Portugal, Brasil e Cabo Verde
2004 - Celebração do Segundo Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que autoriza a adesão de Timor-Leste e prevê que basta a ratificação por apenas três países para que o Acordo Ortográfico de 1990 entre em vigor
2006 - Ratificação do documento oficial por Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe
2009 - Entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1990 a 13 de maio
2010 - Guiné-Bissau ratifica o Acordo Ortográfico, faltando apenas a ratificação de Angola e Moçambique
2011 - Novo Acordo
Ortográfico é introduzido no sistema educativo português no ano letivo de 2011-2012
2012 - Desde o dia 1 janeiro, órgãos, serviços, organismos e
entidades governamentais, bem como as publicações oficiais, passam a ter a sua
grafia adaptada
Estamos em 2016!
Quem quer reverter tudo, mesmo sem falar e acordar com os que
representam outras centenas de milhões que usam a língua portuguesa que também
é deles? Querem que todos os que usaram, por obrigação também, voltem a usar a
grafia dos anos quarenta (ou a anterior a 1911)? Querem que as crianças e
adolescentes “voltem” a escrever de uma forma que nunca usaram?
domingo, 1 de maio de 2016
Moção sobre o 25 de Abril e 1º de Maio aprovada na Assembleia Municipal de Évora
Foi aprovada por unanimidade,na Assembleia Municipal de Évora, a 29 de Abril, esta moção que propus em nome da CDU, sobre o 25 de Abril e 1º de Maio:
Moção sobre
o 25 de Abril e 1º de Maio
“A Revolução do 25 de Abril restituiu aos Portugueses os
direitos e liberdades fundamentais (Prólogo da Constituição de 1976)”. O
Movimento das Forças Armadas, liderado pelos capitães, com o apoio e
participação coletiva do povo português permitiu que se começassem a cumprir as
palavras proferidas por Almeida Garrett na revolução de 1820:
Já
temos uma Pátria, que nos havia roubado o despotismo: a timidez [,] a covardia,
e a ignorância, que o tinham criado, que me prostravam com vil idolatria ante
as obras das suas mãos, acabaram. A última hora da tirania soou; o fanatismo,
que ocupava a face da terra, desapareceu; o sol da liberdade brilhou no nosso
horizonte, e as derradeiras trevas do despotismo foram, dissipadas por seus
raios, sepultar-se no inferno.
O movimento revolucionário de 25
de Abril de 1974, tomou nas mãos a regeneração de Portugal de forma corajosa
mas pacífica, deu a voz aos portugueses, desmantelando uma ditadura de longos
48 anos que comprometia o futuro de um país, que enviava em massa os jovens
para guerras coloniais que oprimiam também o desejo de liberdade de outros
povos, que expulsava da sua terra os camponeses, pela emigração, umas vezes
legal, tantas vezes clandestina, proibia as liberdades, denegava os direitos,
prendia e torturava os que erguiam a cabeça, impunha uma censura férrea,
antidemocrática, moralista e ultramontana, oprimia e rebaixava as mulheres,
usava a economia arcaica ao serviço de elites monopolistas que mal deixavam
sobreviver os que trabalhavam com salários miseráveis, mantinha uma parte
substancial da população no analfabetismo e na injustiça social, negava o
acesso à cultura e modernidade num clima de suspeição e medo, num estado
centralista e totalitário.
Foi também o 25 de Abril um
acontecimento internacional que acordou as esperanças de muita gente pelo mundo
fora, que permitiu a independência das ex-colónias, que iniciou a “terceira vaga”
da democracia que haveria de transformar tantas nações.
Foi possível romper com o
fatalismo, mesmo num conjuntura económica difícil e, apesar das pressões
externas, manter a soberania nacional e melhorar as condições de vida do povo
português.
“O dia inicial
inteiro e limpo/ onde emergimos da noite e do silêncio” (Sofia Andresen), “as
portas que abril abriu”(Ary dos Santos),
tornaram possível também a transformação do aparelho de estado, a dignificação
do estado de direito, eleições livres, não apenas para a eleição de deputados
nacionais e presidente da República, mas também para as autarquias locais, a
elaboração de uma Constituição que este ano fez 40 anos,
onde estão consagrados os direitos cívicos e políticos democráticos mas também
os direitos sociais e culturais, “tendo em vista
a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno” (Prólogo da
Constituição).
Tudo
isto foi possível também, pela longa resistência e persistência de muitos
portugueses e portuguesas, “mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão”
(Manuel Alegre), lutas que atingiam uma das maiores expressões no dia 1º de
Maio, proibido pela ditadura, dia também de intervenções repressivas, mas em
que, apesar das prisões políticas, havia sempre quem cantasse: “vá camarada
mais um passo/ já uma estrela se levanta/ cada fio de vontade são dois braços/
e cada braço uma alavanca” (Hino de Caxias).
Tal
como escrevia com entusiasmo Almeida Garrett, tornou-se possível a liberdade, e
continuará, se lutarmos por essas conquistas:
Escravos
ontem, hoje livres; ontem autómatos da tirania, hoje homens; ontem miseráveis
colonos, hoje cidadãos; qual seria o vil (não digo bem), qual seria o infeliz
que não louve, que não bendiga o braço heróico que nos quebrou os ferros, os
lábios denodados que ousaram primeiro entoar o doce nome Liberdade?
Assim, a Assembleia Municipal de
Évora, em 29-04-2016, reunida no Salão Nobre dos Paços do Concelho, uma das
casas da democracia:
- Saúda todos os que participaram
na construção do regime democrático no espírito da revolução de 25 de Abril;
- Apela à participação dos
cidadãos nas lutas pela justiça social e direitos inalienáveis dos
trabalhadores, no dia 1º de Maio.
quarta-feira, 27 de abril de 2016
Um (meu) 25 de Abril
Invocação
O
que me faz escrever este texto, não são as musas, que adormeceram há muito
nas obras clássicas, mas sempre renovadas, mas o povo de cidadãos que vi
novamente na manifestação do 25 de Abril este ano, em Lisboa, com sentimentos
de alegria, vontade de participar, um espírito unitário, jorros de futuros
contra a desesperança e o medo dos anos tristes de há pouco.
Um
25 de Abril entre outros, mas também de vontade de mudar contra os medos
antigos e interiorizados.
Tinha
16 anos, quase 17, e estava no então oficialmente chamado Liceu Nacional de
Évora, no sétimo ano de Letras. O meu pai tinha recentemente mudado para
Arraiolos, perto de Évora, para que eu e a minha irmã tivéssemos mais
facilmente acesso aos estudos. Também a minha mãe recomeçou a estudar, nada fácil na época, mas sempre com apoio do meu pai.
No
ano letivo anterior estava na antiga Secção Liceal do Liceu de Évora em
Estremoz. Morava em Sousel e ia e vinha de camioneta ou à boleia, às vezes de
comboio numa linha que passava pela serra, cheira de medronheiros e mato
variado. Aprendi muito nesse ano, apesar de tudo Estremoz era um meio um pouco
mais aberto, cheio de contradições também. Porque Sousel era uma terra pacata,
onde parece que não acontecia nada, dominada por senhoritos, pela coscuvilhice
de janelas onde não se vê ninguém, mas em que as notícias sobre a forma de
estar de cada um se espalham depressa, com marcas permanentes para as mulheres,
as jovens que não podiam sair de casa, os rapazes repreendidos por qualquer um,
por usarem cabelos um pouco compridos ou ouvirem certas músicas, um padre
detentor da moral oficial, a separação dos géneros, as classes e até as castas
que ainda existiam, o espaço público privatizado por uma sociedade
hierarquizada. O que valia era que os rapazes ainda podiam andar pelos campos e
ribeiras, com algumas censuras toleradas, mas alguma liberdade de movimentos.
E,
em Évora, já atento às novidades, que ainda se diziam baixinho, com receio de
algum pide, informador (havia tantos, voluntários ou à espera de subir na vida
com migalhas) fui começando a ler “A República”, o “Diário de Lisboa” e a “Seara
Nova” (confesso que uma vez li um artigo de Sottomayor Cardia sobre o Estado
que li e reli sem perceber nada e que só anos mais tarde compreendi qualquer
coisa).
Vi
também em Évora colegas, raparigas, com quem se podia falar melhor, já sem
aquelas atitudes desconfiadas, retraídas, até agressivas numa linguagem codificada,
aparentemente distanciada, algumas simplesmente porque não conheciam a família
daquele que agora aparecia também timidamente, outras porque não sabiam estar
na ausência de controle. Vestiam bata branca obrigatória, eram preparadas quer
quisessem ou não para um futuro determinado pelos pais guardiões e mais ainda
as mães que já tinham sofrido outras prepotências, as tias, as vizinhas, os
padres, até as criadas de algumas. Mas havia quem fosse diferente e outras
apareceram diferentes tempos depois.
Não
sei bem como, mas consegui convencer os meus pais a ficar numa casa em Évora,
onde estavam outros rapazes, também estudantes. E, nessa época, havia estudantes,
poucos ainda, comparado com os tempos atuais, que vinham de variadas partes do
Alentejo, Arraiolos (eu), Montemor-o-Novo, Portel, Alvito, Amareleja, Avis …. Nessa
casa entrávamos pela Rua dos Touros, as meninas pela Rua do Raimundo (a mesma
casa), almoços e jantares à parte, casa de banho em comum, a horas militarmente
diferenciadas. Dos que lá estávamos, eu e outro amigo, ainda tínhamos alguma
liberdade de sair um pouco, os outros não, exceto dois mais velhos que andavam
no Instituto Universitário (dos Jesuítas), mas elas não, horários bem
controlados.
Por
vezes, às escondidas ouvíamos a BBC, num rádio que eu tinha comprado com um
dinheiro que o meu pai me tinha dado, um salário à peça, por passar avisos
postais para aquelas pessoas que não pagavam a água nos prazos devidos (o meu
pai era tesoureiro da Fazenda Pública, da Câmara e da Caixa Geral de Depósitos,
mistura e concentração essas que mostram um pouco o que eram essas instituições
ou o serviço público na época). Apesar das senhoras da casa me terem levado o
fio elétrico, não por causa das notícias, mas porque gastaria muito (?!).
Por
coincidência única, no dia 25 de Abril, o pai de um de nós veio a Évora de
automóvel e levou-nos ao Liceu de carro. Sobretudo um dos nossos amigos ia
ufano por ir de carro, pois que na época todos chegavam a pé.
Começou
a sentir-se o alvoroço. Notícias várias, contraditórias. Havia quem houvesse
escutado na rádio que todos deveríamos ir para casa. Não se sabia se o golpe
militar era para mudar para melhor ou se seria dos ultras (havia o exemplo do
Chile no ano anterior e um tal Kaúlza que se inspirava na Rodésia branca).
Começam
a chegar jornais que alguém comprava, aqueles grandes, como o Século ou o
Diário de Notícias, edições diferentes nesse dia, com fotografias e
comunicados.
Entretanto,
tocava a sineta para as aulas. Tocava no Claustro, movida pela mão do senhor
Francisco, chefe dos contínuos desde longos tempos, sempre simpático com os
alunos, respeitoso, encarregado de educação de tantos, cujos pais não vinham
facilmente à cidade.
Na
aula de História começámos a falar mais abertamente. Já antes tínhamos
percebido que o professor era diferente, já havia conversas anteriores fora das
aulas, e algumas, talvez metáforas, ironias, sobre a situação.
Ainda
fui à aula de Latim. O professor era muito conservador, fora em tempos
seminarista, rígido e metódico de tal maneira que quando havia dúvidas sobre os
sumários, pedíamos o caderno de um aluno de anos anteriores, ninguém entrava
depois de ele entrar (qual segundo toque!), nem a aula era interrompida (cinco
vezes por semana, incluindo sábado) porque ele dizia que “a aula é sagrada”!
Fiquei aparvalhado quando ele disse que o regime tinha que mudar.
Quanto
ao professor de Filosofia apenas o vimos quase de relance, assustado,
desesperado. Quase tive pena dele, porque o senhor não andava bem e deve ter incarnado
os males do regime, embora pense que nada tinha a ver com ele. Na época, eu até
gostava de Filosofia, mas como aí não se aprendia nada, debitava umas coisas que
estavam no manual. Havia, excecionalmente para o regime, dois manuais, do Bonifácio
(aqui adotado) e do Saraiva (havia outro, do Magalhães Vilhena mas esse era
clandestino e eu nem conhecia na época). Eu, como já não tinha paciência para
decorar, só por isso, quando ele me perguntava qualquer coisa, respondia à
minha maneira e ele inquiria-me sobre o manual que teria lido. Respondia que
tinha visto no Saraiva e ele aceitava a resposta, talvez porque não lhe
passasse pela cabeça que os alunos lessem outras coisas ou que tivessem
interrogações! A professora de Português disse nada!
Iam
chegando mais jornais, discutia-se, já ninguém ligava às aulas, os horários
ficaram esquecidos, as colegas começara a tirar as batas e, nesse, e noutros
dias, comecei a reparar que havia uma maior diversidade feminina do que
presumia, até porque os recreios, antes separados, começaram a ser uma mistura
de diálogos, alegria, vida e esperanças, e muito desassossego, sem saber o que
vinha por aí, nesse tal Portugal até aí pluricontinental.
Ao
almoço, creio que a comer uma sopa de beldroegas, recebi um telefonema, também
coisa única (porque quase não havia telefones e era caro), da minha mãe.
Preocupada comigo, mas ao mesmo tempo feliz, porque o meu primo Zé, que estava
exilado em França (e do qual não se podia falar quase nada), talvez pudesse
voltar e a guerra talvez acabasse para ele e para mim, futuro breve esperado
desde há muito, embora eu já soubesse, e ainda sei a morada dele em Paris.
À
tarde (ou seria no dia seguinte?), com outros, passei pela sede da PIDE,
cercada por militares. Via-se fumo, a sair da chaminé, certamente queima de
papéis comprometedores. Ouvi então um jovem oficial dizer em voz alta: saiam
daí, cabrões, filhos de puta!
Compreendi
então que o 25 de Abril estava a dar resultado, que as coisas iam mudar, porque
no dia anterior seria totalmente improvável dizer qualquer coisa de parecido,
sem que se fosse preso, torturado, enviado para a um presídio militar, para a
frente de combate, posteriormente para a prisão e um futuro previsível de exclusões.
À
noite continuavam os soldados em frente ao quartel-general. Eu e o meu amigo
Moreira aproximámo-nos, como muita gente, dos soldados. Disse-me um: “não me
arranjas umas sandes, que estamos há 20 horas sem comer!?
Fomos
a correr a uma taberna no Largo de Alconchel e pedimos sandes ao dono.
Perguntei quanto era e disse que era para os soldados. A resposta foi que não
era nada porque era para os militares e que nos despachássemos. Fiquei com os
olhos vermelhos e percebi que o entusiasmo desse dia não era apenas meu e dos
meus amigos mas de tanta gente anónima que confiava na esperança de todos e
talvez tivesse ainda esperado mais do que eu por este dia.
Compreendi
que o golpe de estado não era apenas um movimento militar e que o país ia mesmo
mudar, que os militares estavam voluntariamente ao serviço da liberdade, que o
povo queria mudança, que tudo estava ser discutido e que o céu cinzento de
ontem seria a partir de agora mais azul.
quarta-feira, 16 de março de 2016
As Alterações de Évora, segundo D. Francisco Manoel de Mello
Além de Severim de Faria, também D. Francisco Manoel de Mello escreveu sobre as Alterações de Évora de 1637, também conhecidas como a Revolta do Manuelinho. Estes motins, que depressa se generalizaram a todo o Alentejo, Algarve e Beira Baixa, foram eminentemente populares, como mostra o texto, e entre os vários motivos estavam o aumento crescente dos impostos (pagos pelo terceiro estado) para manter uma coroa que estava em guerras sucessivas, intermitentes ou cumulativas com algumas potências já importantes ou emergentes, como a Inglaterra, as Províncias Unidas (Países Baixos) e a França, com batalhas tanto em várias terras da Europa, como na América (tanto nas Índias castelhanas, como no Brasil e Maranhão) e noutras Índias, e revoltas internas em várias regiões ou reinos associados (no séc. XVII, na Catalunha, Portugal, Nápoles e antes na Holanda ...). Não se tratava de um estado unificado ainda, mas da união de muitos diferentes reinos, cada um com as suas leis e autonomias. A opressão dos povos, fazia com que o poder fosse cada vez mais associado ao poder castelhano e assim cresce o nacionalismo português, não da mesma forma para todos, porque muitos populares vêm estratos da nobreza associados à política centralizadora do Conde-Duque de Olivares.
De salientar as diferentes posições de portugueses neste contexto em que se desenrolam "em crescendo" os motins, os de "ofícios mecânicos" que D. Francisco chama também "Povo" "vulgo", "da
peor gente da Republica". Aparecem também várias categorias de nobres, titulares, injuriados e suspeitos de apenas quererem manter os seus privilégios, ou membros da Câmara, assim como diferentes posições do clero, como o arcebispo também injuriado ou o papel ativo dos Jesuítas a favor dos populares. Assinam-se decretos e panfletos em nome de um Manuelinho, louco da cidade que ninguém poderia responsabilizar.
Assim fica a cidade ingovernável, no sentido tradicional e fica a cidade com três "governos", identificados com os diferentes estratos sociais:
Mesmo assim, apesar da participação da "a pior gente da República", e apesar da pobreza, não houve notícia de roubos ou assaltos para proveito próprio.
Extractos das Epanáforas ...
Obravão todos os Corregedores do
Reyno, segundo suas ordens; e a nenhum erão jâ ocultas as grandes dificuldades,
que o Povo oferecia a seu comprimento. Entre os mais, o Corregedor de Evora
Andre de Moraes Sarmẽto, de profissão Legista, tratava com desregrado zelo, o
assentamẽto do novo serviço, e repartição dos efeitos, que para seu cobro
tocavão a sua Comarca. Havia já proposto tudo á Camara de aquella Cidade: donde
os Vereadores della, â custa da vontade del Rey, e do clamor do Povo, igualmẽte
mostravão desejo de obedecer, e resistir; porque de hũa parte, a obrigação de
bons Vassallos, e da outra, a de bons Patricios, os dividião, e equivocavão, em
tão contrarios efeitos.
Pareceo, que a mayor impossibilidade, consistia na
vontade do Povo; porque como consta de numero incapaz de castigo, soborno, ou
conselho, he de ordinario, oposto a todos os respeitos politicos. Quiz então o
Corregedor, encaminhar a obediẽcia das cabeça populares, e fez chamar diãte de
si ao Juiz, e Escrivão do Povo, em os quaes de algũa maneira, entre nòs se
reparte a autoridade de aquelle oficio, [A29] que os Romanos chamârão: Tribúno
da Plebe. Erão seus nomes destes, Sesinando Rodrigues, e João Barradas, ambos
da ordem mecanica; e que assi pellos lugares que tinhão da Republica, como
pello credito de amadores da liberdade, se estimavão as pessoas de mayor poder,
entre a multidão de aquelle Povo numeroso, e soberbo[…]
A novidade de aquella
diligencia, que o Corregedor intentâra com os dous Populares, a que tambem se
ajuntava a prâtica comũa, que jà corria pello Povo, das novas imposiçoens que
lhe repartião; abalou grande cantidade de gente em seguimento dos dous
chamados, ou fosse por segurança, ou (que he o mais certo) para atemorizar com
seu numero, o executor da violencia, que temião. Todos estes accidentes
ameaçadores á Republica de custosa novidade, desconheceo, ou desprezou o
Ministro real, contra quem se prevenião: procedendo em persuadir aos Populares,
que tinha encerrados em seu proprio aposento, jâ com promessas, jà com ameaços,
antes que convertidos â multidão, tornassem a participar do espiritu de sua
variadade. […] Dizem, que então indignado o Corregedor à vista de tanta dureza,
soltou palavras de grave injuria contra todo o Povo de Evora, e fez
demostraçoens, de q queria enforcar, como o havia jurado, aos dous q tinha
presentes[…]
Então Sesinando, q era homẽ mais deliberado, chegandose à janela
da propria casa em q se achavão, q como preparada ao movimento, olhava para a
praça da Cidade, pedio em altas vozes socorro ao Povo, dizendolhe: Que morrião
pello livrarem do trabalho que lhe querião dar os Ministros del Rey. De nenhum se pode afirmar, ouvio inteiramente
a voz do Juiz do Povo, segundo estavão todos dependentes de seu aceno.
Quando
com subito estrõdo, ardendo todos em ira, clamârão a morte do Corregedor [A31],
e liberdade, e vida dos Populares. A hum mesmo tempo se levantou a voz, e a
força; e quasi sem espaço de tempo, era entrada, e acesa a casa de aquelle
Ministro. Duvidase se a furia do fogo, ou da gente, andou mais pronta em sua
ruìna. O Corregedor alterado, confuso, e medroso, só intentava escapar a vida,
que pode conseguir, ajudado de algũs nobres, e Religiosos, que logo o
socorrerão, e industriosamente o trespassárão ao Convento de São Francisco;
donde despois em habito diverso sahio da Cidade, e passou á Corte; e nella
experimentou a fortuna dos que se perdem entre ruins sucessos, cuja direcção,
nem por boa, se salva no Tribunal dos Juizos humanos, que só olhão os fins, e
não os meyos de nossas acçoens. Porèm o Povo mais indignado, com esta fugida,
aumentava suas desordens cõ mayores delitos. Afirmase por cousa rara, que toda
a prata, ouro, e dinheiro q despojavão, queimarão na Praça sem algum respeito,
como cousa pestifera, não havẽdo entre tãta multidão (q constava da peor gente
da Republica) hũa só pessoa, que se movesse a salvar por seu proveito qualquer
joya, das que outros entregavão ás chamas tão liberalmente. Tal era o odio, que
pode mais que a cobiça, mais poderosa que tudo. Passou adiante o dano, e forão
trazidos ao fogo todos os livros reaes, que servião de registro aos dereitos
publicos; romperão as balanças dõde se cobrava o novo imposto da carne;
devassárão a cadea, dando liberdade aos prezos de quem esperavão [A32] ser
ajudados, saqueàrão os Cartorios, desbaratando papeis, e livros judiciaes.
Porèm em todas suas acçoens, se mostrou sempre mayor â indignação, que ó
interesse[…]
Porém contra a mesma igualdade, que dos nobres
foi observada naquelle trance, alguns tinhão para si, que â gente principal não
desprazia aquella demostração, porque sendo nella o perigo só do vulgo, que
intentava a resistencia, vinha a ser comum o fruto de aquelle movimento, se por
elle se conseguisse a emenda dos males, que cõtaminavão a Republica. Outros entẽdião
(não peor) que a nobreza só fora quẽ detivera a furia do Povo, em cuja cegueira
não tinha lugar nenhũ respeito. [A33] Todavia vendo os grandes, e nobres de
Evora, que sua inquietação passava jà de vingãça, e que âs vozes havião
sucedido as armas; se ajuntárão em a Igreja de S. Antão, antiga, e principal
freguezia da Cidade, o Arcebispo D. João Coutinho, D. Diogo de Castro, Cõde do
Basto, Visorrei q fora de Portugal, D. Francisco de Mello Marques de Ferreira,
D. Rodrigo de Mello seu irmão, D. Francisco de Portugal Conde do Vimioso, D.
Francisco de Lencastre Comẽdador mór de Avìs, e D. Jorze de Mello. Entre os
quaes tratãdose o remedio do sucedido, se intentârão varios meyos dirigidos á
presente moderação, e para o que podia suceder, se despachàrão os avisos
necessarios. Porèm, como a primeira diligẽcia convinha ser o socego de aquelle
multidão, que cada hora se achava mais atrevida e resoluta; se começou com
brandas práticas a tratar a redução do Povo. Deziãolhes: Quizessem deixar tudo
ao cuidado da Camara, a quem tocava a causa publica, pois a ella, e não a elles
pertencia a conservação de sua Cidade. E para que o negocio aparecesse diante
del Rey com mais justificação, e autoridade, toda a nobreza que alli se achava
presente, se oferecia para interceder com sua Magestade, atè alcançar sobre o
perdão algum bom recurso, com que todos ficassem satisfeitos. Esta proposta não souberão os Inquietos
ouvir, nẽ responder, antes convertendo a ira para aquella parte, começârão a
temerse da Congregação da nobreza. Por ser causa ordinaria entre os que
desordenadamente [A34] seguem hum parecer, julgarẽ por inimigos a quantos lho
não aprovão. Queixavãose, e dizião: Que os senhores, e poderosos de Evora, não
sentião deshumanamente a execução do Povo de sua Patria, porque não erão do
Povo; que para os Grandes, nunca havia novas leys, que não fossem interpretadas
em seu comodo; e que ainda contra a observancia das antigas, se armavão de
privilegios; porque ou não querião dever, usando de sua franqueza, ou não pagar,
abusando de sua autoridade. Que procuravão merecer com o Principe, á custa das
ruìnas da patria, e agora se congraçavão com o Povo, para se justificarem
despois com el Rey, oferecendo por victima, ao sacrificio de sua fidelidade, o
inocente, e simples vulgo, cujo sangue derramasse, como de animaes obedientes,
costumava a barbara gentilidade; porèm que havendose justificado com el Rey,
serião os mais crueis algozes para o Povo; finalmente, que ou se ajuntassem com
os Populares, ou entre si se dividissem, ou procederião contra elles, como
contra inimigos do bem publico. Esta tão dura reposta turbou de novo os animos
dos Congregados; porque não só prometia o risco da nobreza, mas em o Povo dava
mostras de querer passar adiante a mais custosas novidades. Sucedeo então, que
sobrevindo as trevas da noite, se esforçârão tanto os inquietos, que juntos
forão apedrejar o Paço Arcebispal, injuriando com atrevidas palavras ao
Prelado, e sua familia. Outro semelhante, ou mayor tropel, entrou pellas portas
do Conde Dom Diogo de Castro, a quem aborrecião, posto que veneravão, sem outra
causa, que haver [A35] sido grande Ministro. […]
Mas em meyo desta confusão, seguião os
melhores o parecer dos Padres da Companhia, que entre nòs com grande honra
gozão o nome de Apostolos, e são em Evora altamente respeitados, pella
concurrencia de sujeitos grandes, que ocupão naquella sua Universidade. [A36] Porém
elles, ou fosse pello antigo amor aos Reys Portuguezes, ou porque se não
atrevessem a contradizer ainda a furia do Povo, dizem que tacitamente
contribuião às esperanças de algũa novidade. […]
Fora poucos annos antes,
conhecido em aquella Cidade, hum homem doudo, e dizidor, e por isso [A40]
aceitissimo ao Povo, cujo nome era Manoel, e por jogo, e sua notavel grãdeza
irònicamente Manoelinho. Usava fazer pràticas pellas ruas ao vulgo; a quẽ com
vozes desordenadas, e historias rediculas excitava sẽpre a alegria, dõde
procedeo ser na Cidade, e seus contornos, a pessoa mais conhecida; a cuja
lembrãça recorrẽdo algũs de aquelles inquietos, foi ordenado entre elles, que
todas as convocações, cartas, editos, e ordẽs, se despachassem debaixo do sinal
de Manoelinho de Evora; porq assi se escusava de ser jà mais conhecido o Autor
destas obras; ficando aquelle nome, desde então, constituido por sinal publico,
para que se pudessem entender sem confusão, em seus chamamentos. Nesta
observancia amanhecião cada dia fixados pellas praças, e portas da Cidade,
Provisões, Bandos, e Decretos pertencentes ao estabelicimento de sua defensa[…]
D. FRANCISCO MANUEL DE MELO,EPANÁFORAS DE VÁRIA HISTÓRIA PORTUGUESA,
EDIÇÃO SEMIDIPLOMÁTICA POR EVELINA VERDELHO
quarta-feira, 16 de julho de 2014
Dois postais inéditos de Mário de Sá-Carneiro ao seu amigo José Stromp
Encontrei estes postais num álbum que me deu a minha avó já há muitos anos. Sempre conheci este álbum na casa dos meus avós na vila do Cano. Aí pelos finais dos anos sessenta uma sobrinha da minha avó pediu à minha tia selos antigos para uma obra qualquer de caridade, parece-me que relacionada com os soldados que estavam nas colónias. Com alguma falta de cuidado os selos de muitos desses postais foram retirados. Uma vez até mostrei a um especialista em filatelia. Disse-me que não valia nada porque os selos tinham sido arrancados de qualquer maneira.
Intrigava-me um apelido que aí aparecia muitas vezes: Stromp. Mais surpreendido fiquei com a assinatura Sá Carneiro. Confirmei-a comparando com outras dele. E a morada que refere é a da sua casa na época: Travessa do Carmo. As moradas de Stromp também condizem.
Os postais são do mesmo dia 23 de Julho de 1909. Envia dois para o seu amigo, um para a morada do pai deste, no consultório que teria no Largo do Intendente e outro para a casa do Lumiar. É interessante que no segundo caso ele escreve simplesmente Lumiar mas o postal foi entregue à mesma. Imagine-se o que seriam esses "arredores" de Lisboa.
Vê-se que tem urgência, refere uma traduçã que tinha feito. Por esta altura teria uns dezanove anos.
O José Stromp, seu amigo, foi um dos fundadores do Sporting.
Os temas dos postais também têm interesse. São costumes populares, exóticos para quem vive num ambiente urbano, algo românticos, sobretudo o da mulher de Azurara, terra de pescadores (?); o outro de um camponês da Beira Alta.
Provavelmente com algum sentido de humor e informalidade de quem conhece a família.
Os temas dos postais também têm interesse. São costumes populares, exóticos para quem vive num ambiente urbano, algo românticos, sobretudo o da mulher de Azurara, terra de pescadores (?); o outro de um camponês da Beira Alta.
Provavelmente com algum sentido de humor e informalidade de quem conhece a família.
sexta-feira, 23 de maio de 2014
Fazer contas à vida
Teremos eleições europeias dia 25 de maio.
No mesmo dia há uma reunião do BCE em Lisboa. Recordemos que o Banco Central
Europeu, juntamente com a Comissão Europeia e o FMI emprestaram dinheiro a
Portugal com juros muito superiores ao que emprestaram a qualquer banco, que
por sua vez emprestava ao Estado, ganhando uma comissão altíssima. A tal Troika,
de que falamos, exigiu e continua, abaixamento de salários, diminuição e supressão
de direitos que custaram muitos sacrifícios e prisões a conquistar, vendas ao
desbarato de empresas estratégicas… Lembremo-nos que pela lei portuguesa, e
acho bem, a véspera do dia das eleições é para reflexão e no próprio dia não
pode haver qualquer propaganda eleitoral, ideológica que possa influenciar os
cidadãos.
Lembremo-nos também que a crise começou
por ser financeira, bancária, que foi exportada a partir dos EUA, apanhou a
fragilidade dos bancos especuladores europeus, mais a expansão de outros bancos
de mafiosos, como O BPN e os estados foram obrigados pelos que mandam e pelos
seus eunucos a pagar, o que tem significado, e duramente, que são os cidadãos
que têm pago.
Pois o BCE vem fazer uma reunião no dia
25 de maio em Lisboa. O que vem fazer? Por mais que digam outras coisas, vem
simplesmente humilhar, enxovalhar, mostrar a prepotência, mostrar quem manda,
espezinhar os que têm pago para enriquecer os bancos alemães, franceses e
outros, para resolver os seus problemas, à custa dos pagamentos dos povos de
Portugal, da Grécia, da Irlanda, de Itália …
Num dia de eleições, vêm esses
burocratas que escondem os políticos, que não se responsabilizam ou se vendem,
vêm contra a lei de um país independente, mostrar quem manda.
Não venham com essa treta do mercado.
Há mercado, há mercados, há mais que uma economia, há economia política, parece
que esquecida, há quem ganhe sem trabalho, há especulação e é de especulação
que se tem tratado. O dinheiro não desapareceu, mudou de sítio, há quem lucre com os sacrifícios de outros.
Por cá, temos tido um governo de
coligação do PSD e CDS. Antes das eleições queriam que viesse a Troika para
resolver os problemas, queriam mais que a Troika, foram além da Troika,
disseram que era disparate aumentar impostos, não só aumentaram impostos, como
geraram desemprego, levaram empresas viáveis à falência, levaram centenas de
milhares de pessoas à emigração e … não estão satisfeitos.
Nem sequer quiseram aprovar projetos que
punham limites à promiscuidade entre o mundo das empresas e os cargos
políticos, como aqueles que foram apresentados recentemente pelo Bloco de
Esquerda e o Partido Comunista. Votaram contra o PSD, o CDS e o PS. Porquê? Porque tiveram e têm compromissos e clientelas.E se não for isso, demonstrem-no com atitudes diferentes.
Também não me venham com a conversa que
todos são iguais. Há políticos que não ganharam com o BPN, há políticos que não
fizeram o programa económico do PSD e logo ficaram à frente da EDP vendida a um
monopólio chinês, há gente que não pertence a essas sociedades que fazem o
estado pagar (nós) pelos seus serviços, de que têm benefícios vários.
Há quem prefira a abstenção. Por mais desculpas
que se inventem, abstenção é ficar em casa e nada fazer. Admito o voto em
branco, como arma política, não é ficar em casa e depois dizer que os outros
todos é que têm a culpa, quais crianças inocentes ainda a gatinhar.
Também me aborrecem os “enganados” e os
“arrependidos”. Deveriam fazer umas pequenas contas sobre a sua vida e estar um
pouco atentos. Poderiam pensar um pouco mais neles e nos outros. Desculpas há
muitas, e por vezes, cai-se mesmo no ridículo.
Nestas eleições há que pensar no que
tem acontecido em Portugal, um país que ainda tem mais de oito séculos de
existência e que não é menos que os outros, dentro do princípio da
subsidiariedade, que tem dois lados, a União Europeia, fruto de todos os
estados que a integram, e os estados que também exigem.
Queremos ser uma colónia, com um ou
dois estados imperiais? Queremos prescindir dos direitos civis, democráticos, sociais,
culturais? Queremos uma Europa xenófoba, com uns mais importantes que outros, a
mandarem nos que fornecem mão-de-obra barata?
Há que pensar nisto tudo e mais ainda;
há que ver que também que isto tudo pode mudar, mesmo não havendo revoluções,
mas mais um passo.
Eles também tremem. Treme este governo,
tremem outros, treme a Comissão Europeia, treme o mundo financeiro.
Tremem mais se os fizermos tremer.
sábado, 19 de abril de 2014
Sobre Gabriel Garcia Márquez
Eu já
não gostava muito daquela expressão “realismo mágico”, sobre este e outros
escritores da América do Sul. Mas esta ainda entendo como um ponto de vista.
Parece-me que o tal realismo mágico é apenas uma expressão de quem vive noutra
civilização, mais industrializada ou que já ultrapassou essa fase, mais
eficiente, mais comprometida com objetivos que visam o lucro imediato e a longo
prazo: a civilização do relógio, agora digital, do tempo que é dinheiro e vice-versa,
onde pode haver uns tempos programados para férias, artes e literaturas. Dificilmente,
a partir deste ponto de vista se compreende outras realidades, que aparecem
como exóticas, tal como no século XIX aparecia a Espanha ou Portugal, parentes
próximos e seguros, ainda com alguma civilização, ao contrário da África dos “selvagens”,
embora perto, mas estranhos, ainda reveladores dos costumes do antigo regime,
contraditoriamente mantendo os tempos que já tinham passado, de que se sentia
alguma nostalgia e também algum carinho protetor.
Muitos
não terão reparado que Gabriel Garcia Márquez falava mesmo da realidade,
certamente com algumas misturas de realidades, como um excelente contador de
estórias que acrescenta qualquer coisa, que sabe usar os tempos das personagens
e dos ouvintes. Como por cá, mas sempre de forma diferente, com a delícia de
uma linguagem de quem narra para quem ouve e lê, com tempo, como fizeram Camilo
Castelo Branco ou Manuel da Fonseca, ou no Brasil Jorge Amado e Graciliano
Ramos ou Cervantes de uma literatura que se tornou universal, a partir de
aldeias ou regiões reais.
Continua
a circular desde há uma dúzia de anos uma falsa carta de despedida de
Gabriel Garcia Márquez que circula ciclicamente e que ele repudiou veementemente. Por muito que custe a
alguns, ele não estava arrependido nem nunca produziu um texto onde a palavra Deus
aparece tanta vez, num estilo que não era o dele. Há que ler as suas obras
inconfundíveis e não cair na esparrela, reproduzindo um texto que não honra a
sua memória. Há que ler e não difundir para as redes só porque se acha
interessante num primeiro momento.
É de
pensar quem é que nos controla. Se procurarmos no Google ou outros, aparece nos
primeiros lugares
o tal discurso e só depois de muito procurar, poderá ser encontrado um artigo
de alguém a desmentir. Há organizações que manipulam isto de modo a convencer
os outros, utilizando um mito recorrente de que os ateus se voltam para Deus na
hora da morte. Noutros casos, quando a informação não agrada a quem manda, a
informação desaparece. Há por aí umas tendências totalitárias que querem
obrigar ao pensamento único, usando ínvios caminhos de sedução com palavras que
entram facilmente no ouvido de quem já as espera ou já desespera de muita
coisa. Pelo menos que se respeite os mortos e a obra dos que "da lei da
morte se vão libertando".
Há
uns que teimam em definir o que os outros são. Há quem olhe para outros como
espécies exóticas que nos dão algum prazer nas férias ou noutros descansos. O
melhor é ler a obra e que cada um faça dela o que quiser. Foi para isso que foi
feita.
quinta-feira, 16 de janeiro de 2014
Rimas várias para um jantar
Há uns anos (um pouco mais de dez), fiz estes versos por brincadeira. Uma pequena "vingança" pois tinha uma turma que acompanhei durante três anos, várias aulas por semana. No final eram dezasseis alunas, cada uma de sua maneira, normalmente bem dispostas, mas algumas um pouco complicadas, com humores variados. Houve um jantar no final do 12º ano. Não pude ir já não sei porquê. Mandei estes versos de que estava já quase esquecido. Mas lembro-me de quase toda a gente. Algumas quadras eram individualizadas, outras gerais. Alguém se lembrou delas sem já saber do contexto. Mas guardou-as.
Aqui seguem:
Aqui seguem:
Rimas várias para um jantar
PRÓLOGO e INVOCAÇÃO
Entrem senhoras e senhores
Oiçam esta história de pasmar
A história das dezasseis mulheres
Que ao 12º haveriam de chegar
Até Cristo quando subiu aos Céus
Disse a todos os mortais
Aturem-nas agora vocês
Que eu já não as aturo mais
Também Sebastião, o das setas
Tremeu e levantou a mão
Ao ver tanta carta de condução
E o fazer das curvas rectas
E mesmo Maria Madalena
Com seus choros e alegrias
Quase se arrependeu, mas teve pena
De ver na turma tantas Marias
Mas ó Musa minha adorada
Inspira este teu fiel criado
Dá-lhe palavras e alguma pancada
Pois já devia estar deitado
e descansado
E vós ninfas do límpido Xarrama
Ajudai este pobre secretário
Que Neptuno e Vénus que outro ama
Soltem as mágoas do armário
Foram três anos de falatório
Centenas de horas de bichanar
Noventa vezes dois de Purgatório
Quinhentas horas a reclamar
Às duas por três estou mal disposta
Às três por quatro preciso de sair
Vinte faltas e a mesa posta
Três vezes trinta e três para cantar e rir.
Do décimo ao décimo segundo
Vieram atentas e esperançosas
Chegam com as incertezas do mundo
Partem crianças, chegam fermosas
(esta é para rir; também por causa das calorias e outras
manias)
Alguém disse que isto era as Doroteias
Desengane-se quem isso ouviu
Já ninguém aqui cose meias
São artistas como nunca se viu
Vamos à história e às personagens
O estimado público espera para ver
Alguma atenção e breves paragens
Abençoado seja este prazer
São horas de comer!
ANDANTE (e allegro ma non troppo)
De presidiárias está cheio o mundo
Peregrinemos aqui e além
Seja Sartre o mais profundo
Oito a catorze. Amen!
A verdade acima de tudo,
Alegria, trabalho e amizade.
A protectora do sortudo
Sabe o que é a solidariedade
É uma força da natureza
Sai a ela, à mãe e ao pai
Canta a vida e não tem a certeza
Quer a mudança social ... e vai!
Ribomba o trovão no momento
Desfaz-se no mesmo segundo
E nisto surge um encantamento
Um desejo de mudar profundo.
E espanta-se quando se sente
E o sentir é forma de estar
E é isso que faz a gente
E é esse sorriso que a faz voar
Não é de Tróia mas da terra dura
Sabe o que quer e luta por isso
Segue em frente e fura fura
É ainda uma flor em viço
De profundis levanta a neve
Racional, interroga o mundo
Ajuda os outros, ergue-se breve
O seu discurso é profundo
Olha a criança que já passou
E as contradições que mostra à gente
Será que percebe que já mudou?
E que tem pés para ir em frente?
Não é de Pavia mas vai
Não canta mas segue caminho
Às vezes pensa que cai
Segue em frente, com carinho.
Querem Direito, mas ela não quer
Ela fura, e corre segura
Adora a polémica e o malmequer
Vai fermosa e bem madura
Simplicidade é um dom
Diz tanta coisa sem falar
Tem um jeito simples e bom
Uma forma calma no tratar
Atenta, trabalhadora e simpática
Calma, vai além do que faz
Desde a História à Matemática
Também sabe do que é capaz
Ai essa vontade de dizer mais
Ai esse querer e não saber
Pergunta para onde vais
O caminho é não temer
Sorriso discreto e bem bonito
Simplicidade na forma de estar
Intuição e sentimento límpido
Vontade de ir além e voltar
É uma flor que há-de seguir
Continuam as dúvidas para onde vai
Descobriu algo para onde ir
Ou ainda faz o que não quer ouvir?
Anda a História a nove e tal
Mais uma actriz de carreira
O que pretende afinal?
Devagar sobe a ladeira
EPÍLOGO sem Cântico Final (e com exames à espera)
E sem esquecer os demais
Que no caminho ficaram por ir
Mais do que choros e ais
O melhor é começar por rir!
sexta-feira, 6 de dezembro de 2013
A propósito de Mandela
Apenas para lembrar algumas ideias, que
hoje parecem evidentes mas que de vez em quando, “por razões de estado”,
parecem ser facilmente esquecidas.
Se a figura de Nelson Mandela parece
hoje quase consensual, convém recordar que esteve 27 anos preso e torturado, acusado de
terrorismo e incitamento à violência, por um regime ditatorial que legalizou o
apartheid, portanto, a descriminação racial.
Quando alguém propunha medidas contra a
África do Sul e pela libertação dos presos políticos, logo vinham as recusas
justificadas pelo incitamento ao ódio da parte do ANC e de Nelson Mandela e pelo
perigo comunista. Basta ver as posições de países como Israel, Reino Unido, EUA
e Portugal até ao 25 de Abril. Poderíamos falar de outros, porque houve muitos “esquecimentos
e hesitações.
Aqui se transcrevem textos de alguns escritos nesses estados. Repare-se em Locke, a grande referência teórica do sistema
parlamentar inglês, há mais de trezentos anos, a Declaração de Independência
dos EUA, no século XVIII, a Constituição portuguesa, mais recente.
Parece que alguns governos só reclamam
as liberdades para si.
John Locke, The Second
Treatise of Civil Government, CHAP. XIX,1690
[…]
whenever the legislators endeavour to take away, and destroy the property of the people,
or to reduce them to slavery under arbitrary power, they put themselves into a state of war with the people, who are
thereupon absolved from any farther obedience, and are left to the common
refuge, which God hath provided for all men, against force and violence.
Whensoever therefore the legislative shall transgress this fundamental rule of
society; and either by ambition, fear, folly or corruption, endeavour to grasp
themselves, or put into the hands of any other, an absolute power over the
lives, liberties, and estates of the people; by this breach of trust they
forfeit the power the people had put into their hands for quite contrary ends, and it devolves to the people, who. have a
right to resume their original liberty […]
A Declaration of the
Representatives of the UNITED STATES OF AMERICA, in General Congress assembled,
1776
We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal,
that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that
among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness. — That to secure
these rights, Governments are instituted among Men, deriving their just powers
from the consent of the governed, — That whenever any Form of Government
becomes destructive of these ends, it is
the Right of the People to alter or to abolish it, and to institute new
Government, laying its foundation on such principles and organizing its powers
in such form, as to them shall seem most likely to effect their Safety and
Happiness.
Constituição da República Portuguesa, 1976
Artigo 7.º
Relações internacionais
Relações internacionais
[…]
2.
Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer
outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos,
bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos
político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança colectiva,
com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a
justiça nas relações entre os povos.
3.
Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao
desenvolvimento, bem como o direito à
insurreição contra todas as formas de opressão.
Nota: os textos estão no original, não
por uma moda qualquer, mas porque assim “soam” melhor, são mais autênticos; realçamos
algumas frases a negrito.
terça-feira, 3 de dezembro de 2013
As mulheres da Europa e as japôas
A visão que se tem do mundo reflete não apenas o que se consegue ver mas também a forma como se vê a cultura de que se faz parte.
Algumas frase de Luís Fróis, escritor da segunda metade do século XVI, jesuíta, que fala sobre as mulheres da Europa e do Japão. Certamente também um ponto de vista masculino, apesar da curiosidade pelo outro (neste caso as outras, que os padres não são imunes a estas vistas).
in História e Antologia da Literatura Portuguesa do Sé. XVI, Fundação Calouste Gulbenkian
sábado, 2 de novembro de 2013
Honra à sua memória.
As Alterações
de Évora de 1637 foram fundamentais para o processo que levou à Restauração de
1640. Foram motivo de grande preocupação para a monarquia, dado o exemplo que
se poderia seguir nos outros reinos do mesmo monarca, o que de facto aconteceu:
em 1640 estala a grande revolta da Catalunha, começada pelos camponeses que
afluíram a Barcelona, “Els segadors” (os ceifeiros). Ainda hoje o hino da
Catalunha é a eles dedicado.
A revolta
amedrontou a nobreza portuguesa, uns ficaram em casa discretamente, como o
Duque de Bragança, outros continuavam na corte em Madrid ou nos exércitos
espanhóis na Flandres, Itália etc., outros ajudarão na repressão. Mas era comum
da parte da nobreza o desprezo pela gente vil
e sem nome e pelos “arruaceiros”, os pícaros da rua, gente de ofícios mecânicos, inferiores a eles, que
eram de mãos limpas. (as expressões
em itálico eram assim usadas no Antigo Regime, algumas das quais nestes extratos).
Mas repare-se o espanto: revoltavam-se, eram pobres mas não roubavam nada,
apesar de, no momento terem tudo nas mãos. Mas os inquietos destruiam balanças, ecritos etc. que punham em causa as fontes de rendimento da monarquia e da nobreza, os privilégios e o seu papel na manutenção da ordem.
Repare-se
também na posição do duque de Medina Sidónia, ele que era irmão da futura
rainha de Portugal (aquela de quem se diz que mais valia ser rainha por um dia
que duquesa toda a vida): segundo o cronista foi ainda mais duro para com os
populares, para mostrar o seu poder, como um dos grandes de Espanha.
Poderia ainda
perguntar-se: se não tivesse havido esta revolta teria havido a Restauração da
Independência? Será que os catalães teriam feito a revolta de 1640, permitindo
que os portugueses preparassem a defensiva, enquanto os exércitos andavam a
combater os revoltosos? O que teria sido o Brasil: talvez um conjunto de
colónias francesas (os franceses já tinham tentado ocupar o Rio de Janeiro,
andavam pelo Maranhão), ou holandesas (estabeleceram-se no Recife) …?
Notas: a
negrito enfatizam-se algumas expressões do texto citado de D. Francisco Manuel
de Melo, Epanáforas …. As imagens são
da atual Praça do Giraldo: uma placa comemorativa na parede exterior da Igreja
de S. Antão, com os nomes dos que dirigiram a revolta e a fonte henriquina,
coroada por Filipe I de Portugal com a coroa dos Habsburgos.
Porèm o Povo mais indignado, com esta fugida, aumentava
suas desordens cõ mayores delitos. Afirmase por cousa rara, que toda a prata,
ouro, e dinheiro q despojavão, queimarão na Praça sem algum respeito, como
cousa pestifera, não havẽdo entre tãta multidão (q constava da peor gente da
Republica) hũa só pessoa, que se movesse a salvar por seu proveito qualquer
joya, das que outros entregavão ás chamas tão liberalmente. Tal era o odio, que
pode mais que a cobiça, mais poderosa que tudo. Passou adiante o dano, e forão
trazidos ao fogo todos os livros reaes, que servião de registro aos dereitos
publicos; romperão as balanças dõde se cobrava o novo imposto da carne;
devassárão a cadea, dando liberdade aos prezos de quem esperavão [A32] ser
ajudados, saqueàrão os Cartorios, desbaratando papeis, e livros judiciaes.
Porèm em todas suas acçoens, se mostrou sempre mayor â indignação, que ó
interesse.
”[…]
. Queixavãose, e dizião: Que
os senhores, e poderosos de Evora, não sentião deshumanamente a execução do
Povo de sua Patria, porque não erão do Povo; que para os Grandes, nunca havia
novas leys, que não fossem interpretadas em seu comodo; e que ainda contra a
observancia das antigas, se armavão de privilegios; porque ou não querião
dever, usando de sua franqueza, ou não pagar, abusando de sua autoridade. Que
procuravão merecer com o Principe, á custa das ruìnas da patria, e agora se
congraçavão com o Povo, para se justificarem despois com el Rey, oferecendo por
victima, ao sacrificio de sua fidelidade, o inocente, e simples vulgo, cujo
sangue derramasse, como de animaes obedientes, costumava a barbara gentilidade;
porèm que havendose justificado com el Rey, serião os mais crueis algozes para
o Povo; finalmente, que ou se ajuntassem com os Populares, ou entre si se
dividissem, ou procederião contra elles, como contra inimigos do bem publico.
[…]
Fora poucos annos antes,
conhecido em aquella Cidade, hum homem doudo, e dizidor, e por isso [A40]
aceitissimo ao Povo, cujo nome era Manoel, e por jogo, e sua notavel grãdeza
irònicamente Manoelinho. Usava fazer pràticas pellas ruas ao vulgo; a quẽ com
vozes desordenadas, e historias rediculas excitava sẽpre a alegria, dõde
procedeo ser na Cidade, e seus contornos, a pessoa mais conhecida; a cuja
lembrãça recorrẽdo algũs de aquelles inquietos, foi ordenado entre elles, que
todas as convocações, cartas, editos, e ordẽs, se despachassem debaixo do sinal
de Manoelinho de Evora; porq assi se escusava de ser jà mais conhecido o Autor
destas obras; ficando aquelle nome, desde então, constituido por sinal publico,
para que se pudessem entender sem confusão, em seus chamamentos. Nesta
observancia amanhecião cada dia fixados pellas praças, e portas da Cidade,
Provisões, Bandos, e Decretos pertencentes ao estabelicimento de sua defensa:
debaixo desta forma, se escrevião, e
despachavão cartas às Camaras do Reyno, se despedião os Ministros de seus
oficios, e se acomodavão nelles outros, em virtude de hũ simples provimẽto,
assinado por Manoelinho de Evora. […]
O Conselho de Estado
de Espanha, ainda que não tão florente, como nos tempos passados, se achava
todavia rico de sugeitos de grande prudencia, a quem parecia: Que o açoute soministrado aos Inquietos, se
devia reger com grande temperança,
olhandose o estado do Imperio, dilatação, e contrastes de Espanha. Que por nenhum modo fosse tal, que
estimulados de lástima, ou medo, os Vassallos, que em Portugal se achavão firmes (mais, e melhores) quisessem
obrar de maneira, que recebendo todos o golpe, sahisse mais pequeno a cada
hum: porque muytas vezes sucede, que a
porfia, ou excesso da emenda, estraga pella desesperação [A135] de muytos, muyto mais, que com a pena de
poucos remedêa. Que a revolação
se não deixasse, nem à ira, nem ao esquecimento, antes q cõ vagarosa, e apressada destreza, se fosse cauterizando
aquelle erpe interior, que
lavrava pello corpo da nação Portugueza, primeiro que chegasse ao coração, e se fizesse mortal, decepandoo
da união da Monarquia. Que o remedio,
continha duas partes: a presente de castigo, que se havia de executar logo, e a futura de prevenção, que tambem
desde logo, se havia de ir introduzindo.
Mas que medidas ambas, não erão de tanta importancia a primeira, como a segũda. […]
Em quanto em Alentejo, e suas fronteiras, ou jà os
Ministros das armas, ou da justiça, procedião desta sorte, pello Reyno do
Algarve, andava mais soberba a vingança. Estava seu castigo (como dissemos) á
conta do Duque de Medina Sidonia, que jâ havia arribado a Ayamonte, com hum
suficiẽte troço de exercito, de gente mais lustrosa, que disciplinada. He
certo, que aquelle Duque, não tinha outras ordens de mayor rigor, que o de
Bejar, acerca da entrada no Reyno; mas ou porque julgandose mais soberano, lhe
parecesse q o negocio donde sua pessoa intervinha, della só havia de ser dependẽte,
ou porq o Marques de Valparayzo, que o acõselhava, por de terrivel natural, o
guiase por caminhos mais asperos, [A137] determinou proceder no Algarve, mais q
o de Bejar, em Alentejo, riguroso, e absoluto.
[...]
A Justiça foi proseguindo em
suas averiguaçoens, atè proscrever, como Reos de sedição, e cabeças de
amotinados, a Sesinando Rodrigues, e João Barradas: pello qual crime, forão condenados à morte, e em estàtua
justiçados, com horrẽdos pregões, e bandos, prometedores de grãde honra, e
interesse, a qualquer pessoa, que vivos, ou mortos, os entregasse nas mãos da
Justiça. Algũs outros dos que na alteração tiverão menor parte, e por isso
menos advertidos se confiárão, forão tãbem presos, econdenados, huns á forca,
outros a galés, e desterros perpetuos; mas
todos homẽs vìs, e sem nome, e que os mais erão delinquentes, e por
outros delitos merecedores das penas, que só ao caso da sedição referião.
Alterações de Évora e exércitos espanhóis
Cõstava este exercito de Cãtâbria, de varios terços de Infãtaria
Castelhana, quasi toda forçada para [A85] a guerra; a qual entre a
aspereza dos montes de Guepúzcua, agora detida dos frios, agora dificultada do
aperto dos passos, se conservava, mas sempre com vivo desejo de liberdade.
Estimavase seu numero, dentro dos quarteis, em oito mil Infantes, que marchando
soltos, e por terras largas, e conhecidas, se diminuìrão de sorte, que antes de
arribarem â Estremadura, erão menos de quatro mil, e menos os que chegàrão ao
novo alojamento. A mais rigurosa parte de aquellas armas, consistia em hum Regimento
de Dragoens: nova milicia entre nós, e que de Alemanha trouxera a seu cargo Dom
Pedro de Santa Cizilia, de quem no livro primeiro de nossa Catalunha, fazemos
particular menção. Foi nomeado por General deste exercito, o Duque de Bejar,
moço de desasete annos; havendose sua riqueza, e estado por suficiencia,
disserão: Que por ser o mayor senhor da Estremadura, donde o exercito se
juntava, lhe competia o posto[…]
Mas como já no Reyno do Algarve, mostrava para revolverse mayores
designios, foi tãbem mayor o cuidado de se lhe aplicar o remedio; porque os
portos, de q aquelle Reyno he abũdante, causavão muyto mais receyo, que suas
proprias forças. Por esta razão se ordenou, que o Duque de Medina Sidonia,
Capitão General da Andaluzia, ajuntasse da gente de seu cargo, atè seis mil
Infantes, e com os ginetes da costa, e alguns voluntarios, formasse outro
exercito, com q se avesinhasse ao Algarve.
O rei Filipe IV de Espanha, terceiro de Portugal estava a braços com
várias guerras na Europa e no mundo, Países Baixos, Inglaterra, França e corsários,
piratas, contrabandistas, com as remessas de prata do Perú a diminuírem, gastos
da monarquia cada vez maiores e resolve, a conselho ou por ordem do seu valido, o Conde-Duque de Olivares, aumentar ainda mais os impostos. Os do reino de Castela já não aguentavam mais,
já tinha havido até uma revolta popular no País Basco, a população até diminuía
com a fome. Os súbditos dos outros reinos (Aragão, Portugal …) entendiam que não deveriam financiar as
guerras de Castela, invocando as suas leis e autonomia. E, no entanto, os
impostos aumentavam e os recrutamentos militares também.
Depois de outros motins é a vez da grande revolta popular de Évora que
se estende pelo Alentejo, Algarve e Beiras: As alterações de Évora, também
conhecidas por revolta do Manuelinho..
D. Francisco Manuel de Melo vem ao serviço do rei a Évora e descreve,
tal como Severim de Faria os acontecimentos e o contexto.
O Conde-Duque não confiava muito nos portugueses e por isso envia
exércitos espanhóis, apesar da nobreza portuguesa não ter participado nos
acontecimentos, opondo-se até aos vis populares, tal como D. João, Duque
de Bragança, rei a partir de 1640. É interessante que um dos exércitos, que sai
da Andaluzia é comandado pelo Duque de Medina Sidónia, da família Guzman, irmão
de D. Luísa de Gusmão e cunhado de D. João, que anos mais tarde haveria de
tentar uma conspiração para a separação da Andaluzia, com o apoio do rei de
Portugal, que foi paga com a morte do Marquês de Ayamonte (também Guzman), por
ordem do Conde- Duque (também Guzman).
O outro exército, não fosse os crimes cometidos, quase caía no
ridículo. Segundo o cronista, saí da Cantábria e País Basco com 8000 homens a
pé (imagine-se atravessar a Espanha, quase sem estradas) e chega à fronteira
portuguesa com apenas 4000, isto é cerca de metade teriam desertado. Ainda por
cima é comandado por um rapaz de 17 anos, porque era da família mais importante
da Extremadura.
Nota: sublinhados nossos. Ver também texto de Severim de Faria sobre Alterações de Évora
Textos de D.
FRANCISCO MANUEL DE MELO, EPANÁFORAS DE VÁRIA HISTÓRIA PORTUGUESA,
EDIÇÃO SEMIDIPLOMÁTICA, POR EVELINA VERDELHO, CENTRO DE ESTUDOS DE LINGUÍSTICA
GERAL E APLICADA (CELGA) FACULDADE DE LETRAS, UNIVERSIDADE DE COIMBRA, 2007
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