Invocação
O
que me faz escrever este texto, não são as musas, que adormeceram há muito
nas obras clássicas, mas sempre renovadas, mas o povo de cidadãos que vi
novamente na manifestação do 25 de Abril este ano, em Lisboa, com sentimentos
de alegria, vontade de participar, um espírito unitário, jorros de futuros
contra a desesperança e o medo dos anos tristes de há pouco.
Um
25 de Abril entre outros, mas também de vontade de mudar contra os medos
antigos e interiorizados.
Tinha
16 anos, quase 17, e estava no então oficialmente chamado Liceu Nacional de
Évora, no sétimo ano de Letras. O meu pai tinha recentemente mudado para
Arraiolos, perto de Évora, para que eu e a minha irmã tivéssemos mais
facilmente acesso aos estudos. Também a minha mãe recomeçou a estudar, nada fácil na época, mas sempre com apoio do meu pai.
No
ano letivo anterior estava na antiga Secção Liceal do Liceu de Évora em
Estremoz. Morava em Sousel e ia e vinha de camioneta ou à boleia, às vezes de
comboio numa linha que passava pela serra, cheira de medronheiros e mato
variado. Aprendi muito nesse ano, apesar de tudo Estremoz era um meio um pouco
mais aberto, cheio de contradições também. Porque Sousel era uma terra pacata,
onde parece que não acontecia nada, dominada por senhoritos, pela coscuvilhice
de janelas onde não se vê ninguém, mas em que as notícias sobre a forma de
estar de cada um se espalham depressa, com marcas permanentes para as mulheres,
as jovens que não podiam sair de casa, os rapazes repreendidos por qualquer um,
por usarem cabelos um pouco compridos ou ouvirem certas músicas, um padre
detentor da moral oficial, a separação dos géneros, as classes e até as castas
que ainda existiam, o espaço público privatizado por uma sociedade
hierarquizada. O que valia era que os rapazes ainda podiam andar pelos campos e
ribeiras, com algumas censuras toleradas, mas alguma liberdade de movimentos.
E,
em Évora, já atento às novidades, que ainda se diziam baixinho, com receio de
algum pide, informador (havia tantos, voluntários ou à espera de subir na vida
com migalhas) fui começando a ler “A República”, o “Diário de Lisboa” e a “Seara
Nova” (confesso que uma vez li um artigo de Sottomayor Cardia sobre o Estado
que li e reli sem perceber nada e que só anos mais tarde compreendi qualquer
coisa).
Vi
também em Évora colegas, raparigas, com quem se podia falar melhor, já sem
aquelas atitudes desconfiadas, retraídas, até agressivas numa linguagem codificada,
aparentemente distanciada, algumas simplesmente porque não conheciam a família
daquele que agora aparecia também timidamente, outras porque não sabiam estar
na ausência de controle. Vestiam bata branca obrigatória, eram preparadas quer
quisessem ou não para um futuro determinado pelos pais guardiões e mais ainda
as mães que já tinham sofrido outras prepotências, as tias, as vizinhas, os
padres, até as criadas de algumas. Mas havia quem fosse diferente e outras
apareceram diferentes tempos depois.
Não
sei bem como, mas consegui convencer os meus pais a ficar numa casa em Évora,
onde estavam outros rapazes, também estudantes. E, nessa época, havia estudantes,
poucos ainda, comparado com os tempos atuais, que vinham de variadas partes do
Alentejo, Arraiolos (eu), Montemor-o-Novo, Portel, Alvito, Amareleja, Avis …. Nessa
casa entrávamos pela Rua dos Touros, as meninas pela Rua do Raimundo (a mesma
casa), almoços e jantares à parte, casa de banho em comum, a horas militarmente
diferenciadas. Dos que lá estávamos, eu e outro amigo, ainda tínhamos alguma
liberdade de sair um pouco, os outros não, exceto dois mais velhos que andavam
no Instituto Universitário (dos Jesuítas), mas elas não, horários bem
controlados.
Por
vezes, às escondidas ouvíamos a BBC, num rádio que eu tinha comprado com um
dinheiro que o meu pai me tinha dado, um salário à peça, por passar avisos
postais para aquelas pessoas que não pagavam a água nos prazos devidos (o meu
pai era tesoureiro da Fazenda Pública, da Câmara e da Caixa Geral de Depósitos,
mistura e concentração essas que mostram um pouco o que eram essas instituições
ou o serviço público na época). Apesar das senhoras da casa me terem levado o
fio elétrico, não por causa das notícias, mas porque gastaria muito (?!).
Por
coincidência única, no dia 25 de Abril, o pai de um de nós veio a Évora de
automóvel e levou-nos ao Liceu de carro. Sobretudo um dos nossos amigos ia
ufano por ir de carro, pois que na época todos chegavam a pé.
Começou
a sentir-se o alvoroço. Notícias várias, contraditórias. Havia quem houvesse
escutado na rádio que todos deveríamos ir para casa. Não se sabia se o golpe
militar era para mudar para melhor ou se seria dos ultras (havia o exemplo do
Chile no ano anterior e um tal Kaúlza que se inspirava na Rodésia branca).
Começam
a chegar jornais que alguém comprava, aqueles grandes, como o Século ou o
Diário de Notícias, edições diferentes nesse dia, com fotografias e
comunicados.
Entretanto,
tocava a sineta para as aulas. Tocava no Claustro, movida pela mão do senhor
Francisco, chefe dos contínuos desde longos tempos, sempre simpático com os
alunos, respeitoso, encarregado de educação de tantos, cujos pais não vinham
facilmente à cidade.
Na
aula de História começámos a falar mais abertamente. Já antes tínhamos
percebido que o professor era diferente, já havia conversas anteriores fora das
aulas, e algumas, talvez metáforas, ironias, sobre a situação.
Ainda
fui à aula de Latim. O professor era muito conservador, fora em tempos
seminarista, rígido e metódico de tal maneira que quando havia dúvidas sobre os
sumários, pedíamos o caderno de um aluno de anos anteriores, ninguém entrava
depois de ele entrar (qual segundo toque!), nem a aula era interrompida (cinco
vezes por semana, incluindo sábado) porque ele dizia que “a aula é sagrada”!
Fiquei aparvalhado quando ele disse que o regime tinha que mudar.
Quanto
ao professor de Filosofia apenas o vimos quase de relance, assustado,
desesperado. Quase tive pena dele, porque o senhor não andava bem e deve ter incarnado
os males do regime, embora pense que nada tinha a ver com ele. Na época, eu até
gostava de Filosofia, mas como aí não se aprendia nada, debitava umas coisas que
estavam no manual. Havia, excecionalmente para o regime, dois manuais, do Bonifácio
(aqui adotado) e do Saraiva (havia outro, do Magalhães Vilhena mas esse era
clandestino e eu nem conhecia na época). Eu, como já não tinha paciência para
decorar, só por isso, quando ele me perguntava qualquer coisa, respondia à
minha maneira e ele inquiria-me sobre o manual que teria lido. Respondia que
tinha visto no Saraiva e ele aceitava a resposta, talvez porque não lhe
passasse pela cabeça que os alunos lessem outras coisas ou que tivessem
interrogações! A professora de Português disse nada!
Iam
chegando mais jornais, discutia-se, já ninguém ligava às aulas, os horários
ficaram esquecidos, as colegas começara a tirar as batas e, nesse, e noutros
dias, comecei a reparar que havia uma maior diversidade feminina do que
presumia, até porque os recreios, antes separados, começaram a ser uma mistura
de diálogos, alegria, vida e esperanças, e muito desassossego, sem saber o que
vinha por aí, nesse tal Portugal até aí pluricontinental.
Ao
almoço, creio que a comer uma sopa de beldroegas, recebi um telefonema, também
coisa única (porque quase não havia telefones e era caro), da minha mãe.
Preocupada comigo, mas ao mesmo tempo feliz, porque o meu primo Zé, que estava
exilado em França (e do qual não se podia falar quase nada), talvez pudesse
voltar e a guerra talvez acabasse para ele e para mim, futuro breve esperado
desde há muito, embora eu já soubesse, e ainda sei a morada dele em Paris.
À
tarde (ou seria no dia seguinte?), com outros, passei pela sede da PIDE,
cercada por militares. Via-se fumo, a sair da chaminé, certamente queima de
papéis comprometedores. Ouvi então um jovem oficial dizer em voz alta: saiam
daí, cabrões, filhos de puta!
Compreendi
então que o 25 de Abril estava a dar resultado, que as coisas iam mudar, porque
no dia anterior seria totalmente improvável dizer qualquer coisa de parecido,
sem que se fosse preso, torturado, enviado para a um presídio militar, para a
frente de combate, posteriormente para a prisão e um futuro previsível de exclusões.
À
noite continuavam os soldados em frente ao quartel-general. Eu e o meu amigo
Moreira aproximámo-nos, como muita gente, dos soldados. Disse-me um: “não me
arranjas umas sandes, que estamos há 20 horas sem comer!?
Fomos
a correr a uma taberna no Largo de Alconchel e pedimos sandes ao dono.
Perguntei quanto era e disse que era para os soldados. A resposta foi que não
era nada porque era para os militares e que nos despachássemos. Fiquei com os
olhos vermelhos e percebi que o entusiasmo desse dia não era apenas meu e dos
meus amigos mas de tanta gente anónima que confiava na esperança de todos e
talvez tivesse ainda esperado mais do que eu por este dia.
Compreendi
que o golpe de estado não era apenas um movimento militar e que o país ia mesmo
mudar, que os militares estavam voluntariamente ao serviço da liberdade, que o
povo queria mudança, que tudo estava ser discutido e que o céu cinzento de
ontem seria a partir de agora mais azul.
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