quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Mercado de escravos em Lagos

 Antigo mercado dos escravos

Escrevia assim Zurara sobre a chegada dos escravos a Lagos:

CAPITULO XXV
Como o autor aqui razoa um pouco sobre a piedade que ba daquelas gentes, e como foi feita a partilha
[...]
Eu te rogo que as minhas lagrimas nem sejam dano da minha consciencia, que nem por sua lei daquestes, mas a sua humanidade constrange a minha que chore c piedosamente o seu padecimento. E se as brutas animalias, com seu bestial sentir, por um natural instinto conhecem os danos de suas semelhantes, que queres que faça esta minha humanal natureza, vendo assim ante os meus olhos aquesta miseravel companha, lembrando-me de que são da geração dos filhos de Adão!
No outro dia, que eram VIII dias do mês de agosto, muito cedo pela manhã por razão da calma, começaram os mareantes de correger seus bateis e tirar aqueles cativos, para os levarem segundo lhes fora mandado; os quaes, postos juntamente naquele campo, era uma maravilhosa cousa de ver, que entre eles havia alguns de razoada brancura, fremosos e apostos; outros menos brancos, que queriam semelhar pardos; outros tão negros como etiopes, tão desafeiçoados assim nas caras como nos corpos, que quasi parecia, aos homens que os esguardavam, que viam as imagens do hemisfério mais baixo.
Mas qual seria o coração, por duro que ser podesse, ti que não fosse pungido de piedoso sentimento, vendo assim aquela companha? Que uns tinham as caras baixas e os rostros lavados com lagrimas, olhando uns contra os outros; outros estavam gemendo mui dolorosamente, esguardando a altura dos ceus, firmando os olhos em eles, bradando altamente, como se pedissem acorro ao Padre da natureza; outros feriam seu rostro com suas palmas, lançando-se tendidos no meio do chão; outros faziam suas lamentações em maneira de canto, segundo o costume de sua terra, nas quaes, posto que as palavras da linguagem dos nossos não podesse ser entendida, bem correspondia ao grau de sua tristeza.
Mas para seu dó ser mais acrecentado, sobrevieram aqueles que tinham cargo de partilha e começaram de os apartarem uns dos outros, a fim de poerem seus quinhões em igualeza; onde convinha de necessidade de se apartarem os filhos dos padres, e as mulheres dos maridos e os dos irmãos dos outros. A amigos nem a parentes não se guardava nenhuma lei, somente cada um caía onde o a sorte levava!
Ó poderosa fortuna, que andas e desandas com tuas rodas, compassando as cousas do mundo como te praz! E sequer põe ante os olhos daquesta gente miserável algum conhecimento das cousas postumeiras, por que possam receber alguma consolação em meio de sua grande tristeza! E vos outros, que vos trabalhaes desta partilha, esguardae com piedade sobre tanta miseria, e vede como se apertam uns com os outros, que apenas os podeis desligar!
Quem poderia acabar aquela partição sem mui grande trabalho? Que tanto que os tinham postos em uma parte, os filhos, que viam os padres na outra, alevantavam-se rijamente e iam-se para eles; as madres apertavam os outros filhos nos braços e lançavam-se com eles de bruços, recebendo feridas, com pouca piedade de suas carnes, por lhe não serem tirados! E assim trabalhosamente os acabaram de partir, porque alem do trabalho que tinham com os cativos, o campo era todo cheio de gente, assim do lugar como das aldeias e comarcas de arredor, os quaes leixavam em aquele dia folgar suas mãos, em que estava a força do seu ganho, somente por ver aquela novidade.
E com estas cousas que viam, uns chorando, outros departindo, faziam tamanho alvoroço, que poinham em turvação os governadores daquela partilha.

O Infante era ali em cima de um poderoso cavalo, acompanhado de suas gentes, repartindo suas mercês, como homem que de sua parte queria fazer pequeno tesouro, que de RVI 3 almas suas aconteceram no seu quinto, mui breve fez delas sua partilha, que toda a sua principal riqueza estava em sua vontade, considerando com grande prazer na salvação daquelas almas, que antes eram perdidas, E certamente que seu pensamento não era vão, que, como ja dissemos, tanto que estes haviam conhecimento da linguagem, com pequeno movimento se tornavam Cristãos; e eu que esta história ajuntei em este volume, vi na vila de Lagos moços e moças, filhos e netos daquestes, nados em esta terra, tão bons e tão verdadeiros Cristãos como se descenderam de começo da lei de Cristo, por geração, daqueles que primeiro foram bautizados.
in  http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/zurara2.htm
sublinhados nossos

Notas:  Os escravos foram trazidos da costa ocidental africana, sendo uns brancos, outros "pardos" e ainda negros; etíope significa que é da África subsariana; Zurara comove-se mas não contesta (nem pode) a "missão evangelizadora e a "salvação das almas e justifica a posição do Infante; o Infante D. Henrique, governador da Ordem de Cristo assiste, de cima do seu cavalo, aparentemente sem se comover com as separações das famílias.

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